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selos perfeitos de todos os maços de cigarros e de todos os charutos comprados neste país de fumantes; e calcula, após este pequeno trabalho de estatística, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas.

_ Gente pobre a morrer de fome, coitados...

_ Oh! não. O pessoal que se dedica ao ofício não se compõe apenas do doloroso bando de pés descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham também na profissão os malandros de gravata e roupa alheia, cuja vida passa em parte nos botequins e à porta das charutarias.

_ E é rendoso?

_ Rendoso, propriamente, não; mas os selistas contam com o natural sentimento de todos os seres que, em vez de romper, preferem retirar o selo do charuto e rasgar a parte selada das carteirinhas sem estragar o selo.

_ Mas os anéis dos charutos?

_ Oh! isso então é de primeiríssima. Os selistas têm lugar certo para vender os rótulos dos charutos Bismarck _ em Niterói, na Travessa do Senado. Há casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém, dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do

Cisco da grande Cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um Cavador _ é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbs, vai até ao subúrbio, tocando um cornetinha com a lata na mão. Quando está muito Cansado, sentase na calçada e espera tranquilamente a freguesia, soprando de espaço a espaço no Cornetim.

Não espera muito. Das rótulas há quem os chame; ã porta das estalagens afluem mulheres e crianças.

_ O ratoeiro, aqui tem dez ratos!

_ Quanto quer?

_ Meia pataca.

_ Até logo!

_ Mas, ô diabo, olhe que você recebe mais do que isso por um só lá na Higiene.

_ E o meu trabalho?

_ Uma figa! Eu cá não vou na história de micróbio no pêlo do rato.

_ Nem eu. Dou dez tostões por tudo. Serve?

_ Heim?

_ Serve?

_ Rua!

_ Mais fica!

E quando o ratoeiro volta, traz O seu dia fartamente ganho...

Tínhamos parado à esquina da Rua Fresca. A vida redobrava aí de intensidade, não de trabalho, mas de deboche.

Nos botequins, fonógrafos rOufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcOs e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galhO de arruda atrás da Orelha e chinelinhO na ponta dO pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o cOrpo flexível dos birbantes, marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros _ uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia.

De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na Rua Fresca, um rapaz doceiro arriara a caixa, e sentado num portal, entregava o braço aos exercícios de um petiz da altura de um metro. Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.

_ Vês? Aquele pequeno é marcador, faz tatuagens, ganha a sua vida com três agulhas e um pouco de graxa, metendo coroas, nomes e corações nos braços dos vendedores ociosos. O cigano molambeiro aproveita o estado de semi-dor e semi-inércia do rapaz para lhe impingir qualquer um dos seus trapos...um psicólogo, como todos os da sua raça, psicólogo como as suas irmãs que lêem a buena dicha por um tostão e amam por dez com consentimento deles.

Oh! essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integrantes do mecanismo das grandes cidades!

O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver.

Estos son algunos hombres

De obligaciones, que pasan

Necesídad, y procuran
De esta suerte remediarla

Saliendose a los caminos...

Mas o meu amigo não continuou o fio luminoso de sua filosofia. O catraieiro apareceu rubro de cólera, e sutilmente cosia-se com as paredes, ao aproximar-se do cigano.

De repente deu um pulo e caiu-lhe em cima de chofre.

_ Apanhei-te, gatuno!

O cigano voltara-se lívido. Ao grito do catraieiro acudiam, numa sarabanda de chinelas, fúfias, rufiões, soldados, ociosos, vendedores ambulantes.

_ Gatuno! Então vendes como ouro um anel de plaquet? Espera que te vou quebrar os queixos. Sacudiu-o, atirou-o no ar para apanhá-lo com uma bofetada. O cigano porém caiu num bolo, distendeu-se e partiu como um raio por entre a aglomeração da gentalha, que ria. O catraieiro, mais corpulento, mais pesado, precipitou-se também.

Os vagabundos, com o selvagem instinto da caça, que persiste no homem _ acompanharam-no. E pelos boulevards, onde se acendiam os primeiros revérberos, à disparada entre os squares sucessivos, a ralé dos botequins, aos gritos, deitou na

perseguição do pobre cigano molambeiro, da pobre profissão

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