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tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça.

_ Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.

_ Mas eu não quero.

_ Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazenda? Veja a fazenda.

Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça cor de castanha.

_ Para o serviço! Dois mil réis, só dois!...Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis...não gosta de anéis?

O catraieiro ficara, sem saber como, com o embrulho das calças, e o seu gesto fraco de negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara ofrack, cheio de súbito receio.

_ É um anel de ouro que eu achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez mil réis, conta redonda!

O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação

estranha, agarrando a vítima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo ex-Largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas.

_ Admiraste aquele negociante ambulante?

_ Admirei um refinado “vigarista”...

_ Oh! meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. Lembras-te de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que bem exprimem o que são essas criaturas:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran

De esta suerte remediarla

Saliendose a los caminos...

E quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes.

O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo Comércio; o Rio, Como todas as grandes Cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do Cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mas como o cigano não faz outra Coisa na sua vida senão vender Calçar velhas e anéis de plaquet, aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice _ que é sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, Coitados! o ofício, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos

cães e a argúcia dos reporters.

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do Cisco, do que Cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das Cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polícia não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos adelos, pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas...

_ As pequenas profissões!... E Curioso!

As profissões ignoradas. Decerto não Conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os selistas, os Caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a Diretoria de Higiene e as blagues das revistas de ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos.

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_ Mas, senhor Deus! e uma infinidade, uma infinidade de profissões sem academia! Até parece que nãO estamos no Rio de Janeiro...

_ Coitados! Andam todos na dolorosa academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações! Os trapeiros, pOr exemplo, dividemse em duas especialidades _ a dOs trapOs limpOs e a de todos os trapos. Ainda há Os cursos suplementares dos apanhadores de papéis, de cavacOs e de chumbo. Alguns envergonham-se de contar a existência esfOrçada. Outros abundam em pormenores e são um mundo de velhos desiludidos, de mulheres gastas, de garotos e de crianças, filhos de família, que saem, por Ordem dos pais, com um saco às costas, para cavar a vida nas horas da limpeza das ruas.

De todas essas pequenas profissões a mais rara e a mais parisiense é a dOs caçadores, que formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São Os apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurants, já sem pele, onde passam por cOelhO. Cada gato vale dez tostões nO máximo. Uma só das costelas que Os fregueses rendOsos trincam, ã noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale muito mais. As Outras profissões são comuns. Os trapeiros existem desde que nós possuímos fábricas de papel e fábricas de móveis. Os primeiros apanham trapos, todos Os trapos encontrados na rua, remexem O lixo, arrancam da poeira e dO esterco os pedaços de pano, que serão em pouco alvo papel; Os outros têm o serviço mais especial de procurar panos limpos, trapos em perfeito estado, para vender aos lustradores das fábricas de móveis. As grandes casas desse gênero compram em porção a traparia limpa. A uns não prejudica a intempérie, aos segundos a chuva causa prejuízos enormes. Imagina essa pobre gente,

quando chove, quando não há sol, com o céu aberto em cataratas

e, em cada rua, uma inundação!

_ Falaste, entretanto, dos sabidos?

_ Ah! os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos, e batem-se por duas botas iguais com fúria, porque em geral só se encontra uma desirmanada. Esses infelizes têm preço fixo para o trabalho, uma tarifa geral combinada entre os compradores, os italianos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200 réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por mais de 100 réis.

_ Mas é bem pago!

_ Bem pago? Os italianos Vendem as botas, depois de consertadas, por seis e sete mil réis! E o mesmo que acontece aos molambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver _ os belchiores compram as roupas para vendê-las com quatrocentos por cento de lucro. Há ainda os selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do desfalque para o cofre público e da falsificação para o burguês incauto. Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos com anéis e os rótulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200 réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos servem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis. Imagina uns cem selistas à cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5% os

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