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Não têm sequer Os plácidos carinhos
Dessas largas manhãs provinciais e enxutas.
Nem a orquestra dos ninhos

Nem a graça vegetal das frutas.

Os artistas modernos já não se limitam a exprimir Os aspectos proteiformes da rua, a analisar traço por traço o perfil físico e moral de cada rua. Vão mais longe, sonham a rua ideal, cOmO sonharam um mundo melhor. Williams Morris, pOr exemplo, imaginou nas Novelas de parte alguma a rua socialista e rara, com edifícios magníficos, sem mendigos e sem dinheiro. Rimbaud, nas Illuminations, teve a ideia da rua babélica, reproduzindo nos edifícios, sob o céu cinzento, todas as maravilhas clássicas da arquitetura. Bellamy, no Locking Bockward, já sonhava o agrupamento dOs grandes armazéns; e hoje, entre essas ruas de sonho, que Gustavo Khan considera as ruas utópicas e que talvez se tornem realidade um dia, é o estranho e infernal sulco descrito pOr Wells na História dos tempos futuros, rua em que tudo dependerá de sindicatos formidáveis, em que tudo será elétrico, em que os homens, escravos de meia dúzia, serão cOmO Os elOs de uma mesma corrente arrastados pelo trabalho através dos casarões.

Mas, a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro das multidões. Quem criou o reclamo? A rua! Quem inventou a caricatura! A rua! Onde a expansão de todos Os sentimentos da cidade? Na rua! Por issO para dar a expressão da dOr funda, O grande poeta Bilac fez um dia:

A Avenida assombrada e triste da saudade
Onde vem passear a procissão chorosa

Dos órfãos do carinho e da felicidade.

E certo poeta árabe, reconhecendo com a presciência dos vates que só a rua nos pode dar a expressão do sofrimento absoluto como da alegria completa, escreveu a celebradaPraça do riso ao nascer da aurora; o riso de cristal das crianças, o riso perlado das mulheres, o riso grave dos homens a formar um conjunto de tanta harmonia que as árvores também riam no canto dos pássaros, e a própria umbela azul do céu se estriava d,ouro no imenso riso do sol..

Neste elogio, talvez fútil, considerei a rua um ser vivo, tão poderoso que consegue modificar o homem insensivelmente e fazê-lo o seu perpétuo escravo delirante, e mostrei mesmo que a rua é o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso. A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou um símbolo universal. Há ainda uma rua, construída na imaginação e na dor, rua abj eta e má, detestável e detestada, cuja travessia se faz contra a nossa vontade, cujo trânsito é um doloroso arrastar pelo enxurro de uma cidade e de um povo. Todos acotovelam-se e vociferam aí, todos, vindos da Rua da Alegria ou da Rua da Paz, atravessando as betesgas do Saco do Alferes ou descendo de automóvel dos bairros civilizados, encontram-se aí e aí se arrastam, em lamentações, em soluços, em ódio à vida e ao Mundo. No traçado das cidades ela não se ostenta com as suas imprecações e os seus rancores. É uma rua esconsa e negra, perdida na treva, com palácios de dor e choupanas de pranto, cuja existência se conhece não por um

letreiro à esquina, mas por uma vaga apreensão, um irredutível sentimento de angústia, cuja travessia não se pode jamais evitar. Correi os mapas de Atenas, de Roma, de Nínive ou de Babilônia, o mapa das cidades mortas. Termas, canais, fontes, jardins suspensos, lugares onde se fez negócio, onde se amou, lugares onde se se cultuaram os deuses _ tudo desapareceu. Olhai o mapa das cidades modernas. De século em século a transformação é quase radical. As ruas são perecíveis como os homens. A outra, porém, essa horrível rua de todos conhecida e odiada, pela qual diariamente passamos, essa é eterna como o medo, a infâmia, a inveja. Quando Jerusalém fulgia no seu máximo esplendor, já ela lá existia. Enquanto em Atenas artistas e guerreiros recebiam ovações, enquanto em Roma a multidão aplaudia os gladiadores triunfais e os césares devassos, na rua aflitiva cuspinhava o opróbrio e chorava a inocência. Cartago tinha uma rua assim, e ainda hoje Paris, New York, Berlim a têm, cortando a sua alegria, empanando o seu brilho, enegrecendo todos os triunfos e todas as belezas. Qual de vós não quebrou, inesperadamente, o ângulo em arestas dessa rua? Se chorastes, se sofrestes a calúnia, se vos sentistes ferido pela maledicência, podereis ter a certeza de que entrastes na obscura via! Ah! Não procureis evita-la! Jamais o conseguireis. Quanto mais se procura dela sair mais dentro dela se sofre. E não espereis nunca que o mundo melhore enquanto ela existir. Não é uma rua onde sofrem apenas alguns entes, é a rua interminável, que atravessa cidades, países, continentes, vai de pólo a pólo; em que se alanceiam todos os ideais, em que se insultam todas as verdades, onde sofreu Epaminondas e pela qual Jesus passou. Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do desespero _ interminável rua da Amargura.

O QUE SE VÊ NAS RUAS

Pequenas Profissões

O cigano aproximou-se dO catraieiro. NO céu, muito azul, o sol derramava tOda a sua luz dourada. DO cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, O desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. PelOs boulevards sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscosO de imundícies e de vícios. O cigano, de frack e chapéu mole, já falara a dois carrOceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que O catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre esfOmeadO.

Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da

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