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E a vacina obrigatória, que quase apeia o governo do conselheiro Alves, deu uma infinita série de quadras livres. Patriota, jacobino, pândego, o atual bardo da calçada gosta exatamente dessas tolices fesceninas _ é a tara da modinha desde Gregório de Matos _ gosta mesmo de rimar sandices, assim como se vê, abandonado à margem da poesia, mas todos esses sentimentos se fundem na sua extrema liberdade, e o bardo abre o coração como uma represa de lirismo.

Oh! o lirismo das modinhas! Como é possível na miséria da urbs, no pó, na secura, na sujeira das vielas sórdidas, nas escuras alcovas das hospedarias reles, vibrar tamanha luz de poesia?

O lirismo é uma torrente, uma catadupa a escachoar espumante entre as ideias dos bardos. Todos os estilos da veia lírica do povo soluçam e choram nas calçadas. Não é possível deixar de sentir uma infinita amargura, quando nos becos sórdidos, à porta de miseráveis casas, os soldados consentem que os trovadores cantem, loucos de amor, a pureza da mulher transviada.

Virgem casta eu já fui como tu
Já vivi como os anjos no céu
Esta fronte que vês humilhada

Foi coberta de cândido véu.

Essa ideia lírica e adquirida, ideia datando dos conselheiros românticos e da Dama das Camélias, não desaparece nunca _ é a roca em que a musa fia o sentimento nas ruas. Aí os modinheiros perdem-se num estuário de amor. Tudo é paixão. Há o amor trágico:

É meia-noite; o triste bronze chora
A lua oculta numa nuvem escura.
Calou-se a flauta numa longa queixa

O pobre louco morreu de amargura!

o irônico:

Zombaste, mulher com riso de escárnio
De pobre artista todo fogo e ardor
Amava-o, dizias, julgando talvez

Que do mundo fosse algum rico senhor.

o lírico:

Amo-te, ó Virgem, como ama o nauta

À luz da estrela que lhe guia o lar...

o desconsolado:

Nem toda a árvore dá fruta

Nem toda a erva dá flor

Nem toda a mulher bonita

Pode dar constante amor.

ou ainda mais desconsolado:

Perdão, Emília, mas Chorar não posso

o triste:

Quisera amar-te mas não posso, Elvira.

Porque gelado tenho o peito meu

o zangado:

A mulher é diabo de saias
Que nasceu para os homens tentar.
E perversa, é maldosa e tem lábia

Que nos faz a Cabeça girar.
o idílico:
Chiquinha, se eu te pedisse

De modo que ninguém visse

Um beijo, tu mo negavas?

Ai dava! eu dava...

Idílio que bem se podia comparar às mimas de Herondas, se não fosse a calçada O seu autor... Todos os tangOs, Os sambas, os lundus em que se canta a mulata:

É quitute saboroso
É melhor que vatapá
É néctar delicioso

E bom como não há

os acanalhadamente amorosos:

Gosto de ti, porque gosto
Porque meu gosto é gostar
Mas tu de mim não te lembras

Por que me fazes penar?

O descritivo:

Numa COnChinha de prata
Navegavam dois amantes
BeijandO-se dOCemente

Ao som de magos descantes.

o trocista:

O amor da mulher é cachaça
Que se bebe por frio e calor
O amor da mulher é chalaça

E” cantiga de mau trovador.

até o ideal:

Poesia, era esse o nome
Dessa mulher ideal
E amando-a sem ser poeta

Fui louco, pequei, fiz mal.

O amor proteiforme, o eterno amor feito de soluços e risos, que Tennyson dizia senhor da vida e senhor da morte.

Há nessas modinhas e nessas cançonetas, de par com a paixão, a tristeza e a troça, um milhão de erros de gramática e de metrificação. O verso é quase ignorado pelo trovadores ocasionais. Mas que lhes importa isso, se não se importam com a honra, o bem-estar, a glória? Os poetas não têm versos, têm cavaquinhos, violões e a voz para dobrar e quebrar os nossos nervos. Ao povo basta a cadência, o som sugestionador que chega

a atrair os crocodilos. Uma história sem sentido como esta

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