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Desde que seus olhos Vi
Pulas e bates no peito
Tape, tepi, tipi, ti
Coração, não gostes dela

Que ela não gosta de ti.

Os grandes poetas não fazem mais versos para toda gente _ o nível intelectual da classe média subiu assim Como a proporção geométrica da sua pretensão, e os vates são parnasianos, são simbolistas, procuram a forma sensível e a essência oculta.

Em compensação brotam na Calçada, como Cogumelos, os bardos ocasionais da sátira e da paixão; e, varejando botequins e ruelas de Suburra outros Zuzus vamos encontrar em pleno triunfo. Esses vates têm uma só preocupação séria _ Cantar. Cantam como as cigarras e o canto dá-lhes para viver no eterno Verão desta terra abundante. Quando não há dinheiro, inventam para uma certa música conhecida os versos do Ferramenta ou Sobe ou Arrebenta, O Roca da Rua da Carioca, a Cantiga Ah! se Fosses Minha, mandam imprimir e vendem tudo por dois tostões. Admiram-se que eles imprimam e, o que é mais, esgotem edições, milheiros e milheiros de exemplares? Pois imprimem como qualquer poeta. Apenas eles vendem, e a maioria dos poetas oferece grátis aos amigos...

Mas os poetas da calçada não imprimem e vendem só. O espírito prático é, evidentemente, um progresso. Eles, entretanto, progrediram mais. Há trinta anos o bardo tinha uma gaforinha oleada e uma unha _ desapareceram. Ao Começo, logo que a musa caiu na populaça, resolvida a não voltar jamais aos salões, os versos à margem da poesia eram ainda uma qualidade especial de certo grupo limitado. Hoje a musa é de todo o gênero, O bardO deixou de ser um tipo porque todos cantam, e a sua história, que ninguém quer saber, é um conjunto de elementos para a análise da vida urbana.

A musa tem preferidos e tem estetas, tem críticos. Como chovesse muito um dia, acolheu-se a um desvão de porta. Dentro bebiam. Para beber também, ela cantou, e criou-se ocabaret nacional, esses estabelecimentos inéditos chamados chopps. Quando O chopp percebeu que perdia a graça sem ela, a musa da calçada tinha invertido o seu sistema romântico. Outrora ela bebia para cantar. Agora canta para beber. A indústria, o interesse, O lucro, o lucro, essa miragem que tanto faz progredir Os povos como as literaturas, propagou-a, espalhoua, tornou-a torrencial. A musa delira hoje numa pândega infrene, de bodega em bodega, de chopp em chopp, de tablado em tablado. Nesse turbilhão de bardos e de cantares surgiam alguns mais dados à evidência _ O Geraldo, o Eduardo das Neves, o esteta Catulo da Paixão Cearense! O Geraldo deitou elegância e botinas de polimento; o Eduardo das Neves tinha bombeiro, antes de ser notável. Quando foi número de music-hall, perdeu a tramontana e andava de smoking azul e chapéu de seda. A sua fantasia foi mais longe: chegou a publicar um livro intitulado Trovador da Malandragem, e esse Trovador tem um prefácio cheio de cólera contra pessoas que duvidam da autoria das suas Obras.

“Por que duvidais, diz ele, isto é, não acreditais quando aparece qualquer choro, qualquer composição minha que cai nO goto do público e é decorada, por toda a gente e em toda a parte, desde nobres salões até pelas esquinas nas horas mortas da noite?”

Ninguém ouviu os choros do Sr. Eduardo nos salões fidalgos mas o Sr. Eduardo tem essa convicção definitiva, além de muitas outras. Depois de cantar algumas intimidades da sua vida, chegou mesmo, num lundu intitulado O crioulo, a desvendar o mistério de uma senhora loucamente apaixonada pela sua voz. No final do negócio a dama murmura:

Diga-me ao menos

Como se chama

E ele, complacente:

Sou o crioulo

Dudu das Neves

Dudu, entretanto canta apenas as suas obras. Há um outro sujeito, chamado Baiano, que sabe de cor mais de mil modinhas, e para o qual trabalham a oito mil réis por número, meia dúzia de poetas que nunca saíram nos suplementos dominicais dos jornais. E se baiano tem essa prodigiosa memória, o Sr. Catulo, último trovador velho-gênero, é o esteta da trova popular. Vê-lo recitar O Poeta e a Fidalga, com um copo de chopp na mão, é um desses espetáculos de brasserie inesquecível. Catulo emaranhou-se no dogma da moda, corrigiu os versos de tudo quanto era quadra, estudou Bellini, Donnizetti, Verdi, adaptou os nossos versos a trechos de óperas e, finalmente, compôs traduções livres de Leconte de Lisle para serem recitadas ao piano! Há no prefácio da Lira dos Salões, o livro em que se encontra Leconte no pelourinho do recitativo, a estética fundamental da modinha:

“Julgo difícil, diz ele, e escabroso o trabalho de escrever poesias para adaptar a músicas que já preexistem de há muito, e com extrema razão quando essas composições musicais foram escritas por quem nunca presumiu que elas fossem sacrificadas, isto é, cantadas com letras.”

“Canto valsas, schottischs, mazurcas, polcas, romances, árias de óperas, e já cheguei ao esquisitismo de cantar até uma quadrilha inteira.”

E mais adiante, no mesmo tom, depois dessa coisa espantosa e pernóstica:

“Vós me pedis, suponde, que eu faça a poesia para certa música. Crede que eu, imediatamente, sem mais reflexão, empunhe a pluma e a Vaze no papel? Não. Há algumas dessas músicas que me fazem levar horas inteiras a interpretar-lhes os sentimentos, os queixumes, as mágoas de que sofrem os seus autores.”

“Leitor! ascende a tal culminância o orgulho que tenho de saber poetar para o canto que, sem acanhamento, teria o desaforo de vos dizer que o dia em que um competente me dissesse: esta ou aquela frase não foi bem adaptada, não diz o que diz a música, está incolor, esse dia seria o último da minha Vida, porque ou suicidar-me-ia ou sucumbiria de pesar por ver aquele meu orgulho destronado.”

Catulo, hiperestesia da musa urbana, é, apesar de tanta trapalhada, Capaz de fazer célebres vários poetas, quase desconhecido e vive à margem da poesia, poeta da musa anônima, poeta da calçada...

Porque a musa não se rala com a interpretação de partituras.

Basta-lhe o fato, o sucesso do dia, três gotas de paixão e um

violão. Vibra acordes patrióticos, a dúvida, o desejo, e e o necessário para ser Compreendida.

A característica principal dos poetas da calçada é o patriotismo, mas um patriotismo muito diverso do nosso e mesmo do da populaça _é o amor da pátria escoimado de ódios, o amor jacobino, o amor esterilizado para os de casa e Virulento para os de fora. O homem do povo é no Brasil discursadoramente patriota. A sua questão principal é o Brasil melhor do que qualquer outro país. O sucesso e a popularidade de Santos Dumont são devidos menos aos seus trabalhos de aviação que ao ter Causado a admiraçâo de Paris. Para o patriota ele não se fez admirado _ dominou. A popularíssima cançoneta do Beranger

das Neves é um atestado:

A Europa curvou-se ante o Brasil

E aclamou parabéns em meigo tom

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