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aglomeração, a urbs, é uma necessidade de alma urbana e espontânea Vibração da calçada. Se quiserdes saber o que pensou o boulevard durante vinte anos, comprai esses papeluchos de um sou que os camelots vendem. Há desde a história do Panamá à questão dos cultos, desde a renúncia de Perier até a condenação de Sarah Bernhardt.

E se os gregos asseguravam que a poesia é um delírio inspirado pelas musas às almas simples e Virgens, se o Evangelho afirma pretender o céu às crianças e aos que lhes parecem _ por que teimaremos nós em dizer que a poesia preferiu o nosso cérebro ensanduichado em literaturas estrangeiras à alma simples do povo ignorante? Os poetas da calçada são as flores de todo o ano da cidade, são a sua graça anônima, a sua coquetterie, a sua vaidade anônima e sua sagração _ porque afinal o próprio Platão, que julgava Homero um envenenador público, considerava o poeta um ser leve, alado e sagrado.

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E exatamente assim a nossa musa urbana. Dispépticos intelectuais, vêmo-la tristemente à margem da poesia. Que idade tem ela? Tem séculos e parece nascida ontem, passou por todas as Vicissitudes e chalra como uma criança. Conhecem-lhe a origem? Pois decerto.

A musa renovou aqui o símbolo do filho pródigo. Teve pais notáveis, princípios sérios, e viveu no palácio dos reis, frequentou os gênios e os salões fidalgos. Mas um belo dia, sem dizer águaVai, foi-se, degenerou, pintou o sete, embebedou-se, Vive pelas alfurjas e chombergas, afina o violão em sítios escusos, e _ ó acontecimento! _ está forte, está sacudida, é a única musa que não tem cefaleias e não sofre de artritismo. Quem a criou? Gregório de Matos ao norte fez o lundu; S. Paulo ao sul o Viradinho. A fusão dos dois é a alma do Brasil. Logo que a teve assim Com todos seus encantos, Caldas Barbosa, mulato arcadiano, levou-a para Portugal.

A modinha entrou no paço dos reis, ensandeceu os peraltas e as sécias da decadência rocalhante do XIX século lusitano. As damas fechavam-se nos quartos e respiravam as endechas com o prazer de uma ação Capitosa; os homens eram convidados para tais atos como hoje se convida para os five oac/ock onde há flirt. O versinho ingênuo e babado delirava os baldaquins de trono real e a gracilidade das grandes damas. E como resistir? Como lhe poderiam resistir meridionais da terra do fado? A Modinha era o soluço, era o gemido, era o riso, era o suspiro ardente da selva ardente. Nem Lord Beckford, um inglês frio e fatalmente de gelo, Como todos os ingleses, pode resistir, e esquenta e derrete. É dele a mais fogosa descrição de machucado da nossa canção:

“Quem nunca ouviu”, diz, “este original gênero de música, ignorará para sempre as mais feiticeiras melodias que têm existido desde o tempo dos sibaritas. Consistem em lânguidos e interrompidos Compassos, Como se faltasse o fôlego por excesso de enlevo e a alma anelasse se unir a outra alma idêntica de algum objeto querido.”

“Uma ou duas horas Correram quase ímperceptivelmente no deleitoso delírio que aquelas notas de sereia inspiravam, e não foi sem mágoa que eu vi a Companhia dispersa e o encanto desfeito.”

Depois os poetas que sabiam ler continuaram a dar O seu prestígio às sibaríticas melodias que punham Lord Beckford em delírio e em deleite, e nós vemos tOda a escola romântica tomar inconscientemente na maioria dos seus versos a feição melódica, o metro modinheiro; vemos aquele pernóstico elegante, O Magalhães dos Suspiros Poéticos, escrever em Roma versos que estão pedindo cavaquinho, gaforinha e unha grande; vemos Castro Alves criar para esse gênero canções de uma frescura eterna COmO a Tirana:

Minha Maria é bonita

Tão bonita assim não há

O beija-flor quando passa
Julga Ver o manacá

Minha Maria é morena
Como as tardes de verão
Tem as tranças da palmeira

Quando sopra a viração.

E Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias e Bittencourt da Silva, Ezequiel, MelO Morais, a leva dOs ex-acadêmicos atuais conselheiros, e esse estranho Alvares de Azevedo, o único genial do bando romântico, o único predestinado como os grandes vates, o único que nO choro de praxe desamargurados de estilo tinha O soluço presciente de uma tumba a abrir-se, o único que conservava nO torvelinhO das paixões uma alma de rosa cujo perfume desejava o céu, O únicO que hoje, amanhã, ninguém lerá sem sentir o soluço, o travo da mOrte, O ai! das agonias e a tristeza que nos causa o desaparecer de um astrO, O murchar de uma flor, o tombar de um pássaro cujo breve cantar não passou de uma alegria em torno do próprio ninho...

Ainda um instante, ligando à sua dualidade, arma de dois gumes, sátira e lirismo, a musa foi a senhora capaz de entrar num salão e se conservar num ambiente respeitável. A sua paixão porém levou-a a acompanhar Laurindo Rabelo a maus lugares, o Laurindo cigano dos repentes, cantador emérito, de quem se tem dito tanto mal, tanto bem e tanta mentira. E de repente quando se falou num salão de modinhas, as damas coraram e os de família mudaram de conversa, arredando esse assunto fescenino, imoral, prejudicial à pureza do lar. A modinha dera na gandaia, a modinha era vagabunda, a modinha descera à ralé, integralmente anônima, desprezada. Melo Morais empresta a sua companhia de homem sério a tamanha bambochata, precipita-se nas vielas e bodegas para apanhar a história dos mais célebres e mais notáveis poetas, que ninguém conhece, e traz-nos naquele seu estilo, tão seu, tão complexo, tão bizarro, esses curiosos períodos:

“No Olimpo das serenatas do tempo, percebemos neste momento desfilar espectralmente, orvalhados dos relentos daquelas noites, vultos de transcendente nomeada, excelentes rapazes que passaram neste mundo para deixar lampejos fugazes e duradouras recordações. E foram eles pelo crisma popular conhecidos por Zuzu Cavaquinho, Lulu do Saco, Manezinho da Cadeia Nova ou Manezinho da Guitarra, Zé Menino, Vieira Barbeiro, ainda o Caladinho, o lnácio Ferreira, o Clementino Lisboa, o Rangel, o Saturnino, o Luisinho, Domingos dos Reis, que lá desceram para os túmulos, que ora volteio, agitando os ciprestes que os resguardam sob o céu sem eco das necrópoles.”

A modinha tinha por cultores o Manezinho do Saco e o Zuzu Cavaquinho. Pobre modinha!

Hoje, vinte ou trinta anos depois, é ainda mais abundante, mais popular e mais estranha ao nosso paladar de estética elevada. Cada cançoneta tem uma porção de pais. A musa urbana, a musa das ruas, que ri dos grandes fatos e canta os seus amores pelas esquinas, nas noites de luar, a musa é a de todo um milhão de indivíduos. Nessas quadras mancas Vivem o patriotismo, a fé, a pilhéria e o desejo da populaça, desses Versos falhos faz-se a sinfonia da cidade, proteiforme e sentimental. A modinha e a cançoneta nascem de um balanço de rede, de uma notícia de jornal, de fato do dia _ assunto geral _, do namoro e da noite _ assunto particular. Se em Paris é a rapsódia da miséria e a Vergasta irônica, no Rio é a história Viva do carioca, a evoluir na calçada, romântico, gozador e peralta. A gargalhada da rua faz-se de uma porção de risos, o soluço da paixão de muitos soluços _ a musa é policroma, reflete a população confusa e babélica tal qual ela é. Já se não encontram modinhas com a beleza de forma do Talvez não creias.

Talvez não creias que por ti sou louco
Tens feito pouco porque tu és má
Talvez duvides, mas, donzela, eu juro
Que amor tão puro como o meu não há.

Ou com a graça meio infantil no Tipe-ti:

Coração, que tens com Lília?

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