Imagens da página
PDF
ePub

Deus misericordioso! Que fatalidade sinistra arremessara aquele pobre ente inteligente, descendente de uma família honesta, à tropilha de uma colônia correcional? Que destino inclemente impele na sombra o homem, forma os vagalhões da popularidade, afoga uns, atira outros às estrelas e emaranha no dissabor e na tristeza a marcha do maior número? A essa mulher bastara perder o apoio da sociedade, para acabar no horizonte fechado de correcional todos os sonhos de ambição, todas as ideias felizes que os pais depositaram no seu espírito. Que lhe servia a visão superior do mundo na cloaca do crime e da luxúria? Que lhe servia ter ensinado às crianças o amor das coisas dignas, se o seu fim era acabar no eito da colônia, cavando a terra entre as desordeiras e as perdidas varridas da cidade?

Tomou-se uma espécie de medo, de fobia neurastênica. Recuei. O guarda dizia:

_ Deixa de lambança, Maria. Todos te conhecem. Saiba V. Sa que é popular nos quiosques da Estrada de Ferro Central. Vai às cinco da manhã, e só deixa de beber quando os quiosques fecham. Antigamente servia-se da barriga para dizer que estava grávida e ser bem tratada na delegacia. Agora não há mais disso. E uma alcoólica mais malcriada que qualquer outra.

A mulher calou-se. As outras tinham parado e de repente a tísica, a que tinha na face a expressão horrenda de uma agonia sem fim, caiu de joelhos soluçando.

_ Se eu tivesse o meu perdão. Nossa Senhora! não morreria aqui! Se eu tivesse o meu perdão, eu ia morrer sossegada.

Fora o sol enchia todo o pátio de um esplendor de puro líquido.

A MUSA DAS RUAS

A musa das ruas é a musa que viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho da populaça e a ânsia de todas as nevroses, é a musa igualitária, a musa-povo, que desfaz os fatos mais graves em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova Como a própria Vida. Se o Brasil é a terra da poesia, a sua grande Cidade é o armazém, o ferro-velho, a aduana, o belchior, o grande empório das formas poéticas. Nesta Cosmópolis, que é o Rio, a poesia brota nas classes mais heterogêneas. A Câmara regurgita de vates, o hospício tem dúzias de versejadores, as escolas grosas de nefelibatas, a Cadeia fornadas de elegíacos. Onde for o homem lá estará à sua espera, definitiva e teimosa, a musa. Se tomardes um bonde modesto, encontrareis o palpite do bicho em verso nas Costas do recibo; se entrais nos tramways de Botafogo, o recibo convida V. Exa numa quadra a ir a Copacabana. Os cafés são focos de micróbio rítmico, os blocos de folhinha, as balas de estalo, as adivinhações dos pássaros sábios, as polianteias, esse curioso gênero de engrossamento tipográfico e indireto, as tabuletas, os reclamos, os

jornais proclamam incessantemente a preocupação poética da cidade, O anônimo mas formidável anseio de um milhão de almas pelo ritmo, que é a pulsação arterial da palavra. O verso domina, o verso rege, O verso é O coração da urbs, O verso está em toda a parte comO o resultado absoluto das circunvOluções da cidade. E a musa urbana, a musa anônima, é como O riso e o soluço, a Chalaça e O suspiro dOs sem-nome e dos humildes.

A musa urbana! Ela é a canção, começa com os povos na história, e talvez tivesse, como o homem, a sua pré-história. Contar-lhe a idade é tentar um mergulho intérmino na clássica noite dos tempos. O primeiro homem, para dar a expressão à ideia, deu-lhe o ritmo; a primeira tribo, para exprimir os sentimentos mais complexos, descobriu a cadência. A civilização é a apoteose do verso popular, porque mais nitidamente acentua a facilidade de exprimir da massa ignorante. Os gregos faziam mOdinhas a todo o instante e a todo o propósito, e davam para cada uma denominação especial. Antes de saber ler tinham o sentimento do metro poético, e é O grave Aristóteles que nos faz sentir esta ridente ideia: Canção e lei eram uma mesma palavra

entre os helenos.

1

A modinha e O instinto bárbaro de independência e de maravilha nO homem. Louva aos deuses, incita à guerra, canta a mesa, chora desejos de carne, e _ ó coisa admirável! _ foi ela que trouxe desde Atenas para Os superficiais prazeres de civilização esses sons frívolos que nOs cafés-cantantes nos fazem tanto bem, foi ela que modificou a Onomatopeia selvagem, no delicioso tralalá.

Quando a musa anônima inventou O tralalá, jocunda insignificância, mais vasta, mais profunda que um etc. na conversa de um embaixador, a musa assegurara para todo o sempre a imortalidade, e vémo-la zurzir os césares em Roma e bajulá-los também; vêmo-la em plena Idade Média esconder-se nas pedras das catedrais e florir sob as espadas nuas dos cavaleiros; vêmo-la irradiar pelo universo início de literaturas, semente de grandes ideias, e nos tempos modernos fazer-se clava destruidora, bomba revolucionária, impondo a fórmula _ igualdade, liberdade, fraternidade.

A canção é a sobrevivência alegre de um gênero comprido e lúgubre chamado poema épico, que já entre nós não tem cultores; a musa do povo tem esse aspecto infinito _ é o contínuo epítome da história.

Cada nação moderna pode esquissar séculos da sua vida mental, política e artística, apenas com uma coleção de cantigas. A Revolução Francesa que todos teimam em considerar a base do mundo começou por modas satírícas contra Luís XIV, Richelieu e Mazarino, acentuou-se contra os favoritos de Luís XV, tornou-se brasa, látego, fogo, vergasta quando Maria Antonieta enfeitara carneirinhos nos prados cuidados, explodiu em quadras e estribilhos que lembram o embate de cargas de baionetas e afinal concluiu numa canção guerreira, a Marselhesa, que não se ouve sem se sentir a irresistível emoção do triunfo, da vitória, da apoteose.

As artes são por excelência ciências de luxo. A modinha, a cançoneta, o verso cantado não é ciência, não é arte pela sua natureza anônima, defeituosa e manca: é como a voz da cidade, como a expressão de justiceira de uma entidade a que

emprestamos a nossa vida _ colossal agrupamento, a formidável

« AnteriorContinuar »