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duas. Outras atiraram-se à cara dos apaixonados num desespero de bebedeira.

_ Saiba V. Sa que da outra vez que estive aqui fOi pOr Causa do inspetor. Eu tinha O meu bajOujO; o bobo Cheio de “fObó” estava-se endireitando. Mas veiO de carrinho. O diabo Vingou-se!

E lOgO outra, apOplética:

_ Cá comigo é nove. Não gosto de presepadas. Ele era um rOdelista. Quando a gente gosta de um homem, gosta mesmo, nem que bata O trinta e um.

Falavam uma língua imprevista e curiosa, cuspinhando; e olhando as pobres coitadas, não sabia eu bem se falava a mulheres velhas ou a mulheres novas, de tal forma aquelas faces e aqueles Corpos estavam arruinados. Perguntei a uma pardinha cujos dentes eram brancos e que devia Ter sido bonita:

_ COmO se chama?

_ Quantos anos tem?

_ Francisca Maria.

_ Tenho Vinte.

E estava havia cinco naquela vida de horror. E assim a Carmem da Rua Morais e Vale, e assim a Carmelina com uma navalhada na face, vibrada pela rival enquanto dormia, e assim a velha Rosa Maria à espera da liberdade apenas para continuar o seu fadário e voltar a detenção. Todas estão tatuadas, tatuadas nos seios, ombros, tatuadas nos braços, nas pernas, no ventre, tatuadas nas mãos, algumas até tatuadas na testa. Esses riscos azuis e essas manchas negras dão-lhes um aspecto bárbaro, um ar selvagem. Nenhuma decerto tem mais família ou amizades duradouras. A tatuagem para os seus pobres corações apodrecidos é como a exteriorização da saudade. Muitas têm, entre espadas, cristos, sereias, peixes, coroas imperiais, o nome dos que lhes deram o ser, o nome dos irmãos, o dos filhos perdidos e dos amantes que se foram: muitas, nas horas de solidão, têm na própria pele a

recordação da eterna dor.

Cavalhada da luxúria, correndo nos recantos da cidade ao lado da morte e do assassinato, destinada aos fins trágicos da miséria, da sífilis ou do ciúme feroz, os seus próprios corpos são como o perpétuo símbolo das suas adorações, os altares onde se confundem todos os sentimentos. A cabocla Carmelina, uma das mais tatuadas, tem de tudo no corpo e até as falanges formam com iniciais o nome do irmão. Os braços, ela os dedicou ao amor. Há nomes e nomes, uns por cima dos outros, alguns apenas em iniciais, outros por extenso. Examinando esses dois braços de Vênus asquerosa, que com o mesmo delírio e a mesma alma apertaram na chama da paixão apaixonados diversos, o guarda perguntou, como quem quer decifrar um enigma:

_ E qual destes é querido agora?

Carmelina esticou o braço esquerdo, e todos nós lemos, enquanto ela sorria, o nome de Narciso, com uma cedilha de mais por baixo do c. A criatura amava um Narciso, e decerto naquele momento aos seus olhos surgia a imagem desse seu deus temporário.

Eu porém já me nauseara, e Antônio Barros, chefe dos guardas, sempre solícito, levou-me à enfermaria, onde havia apenas três doentes _a Herculana assassina, a negrinha Gabriela do Pontes e uma pequena, feia, magra, olheirenta, espapaçada na cama como uma das múmias americanas que o museu guarda na sua seção de etnografia. Essa criaturinha tem quinze anos e parece ter mil. É dolorosamente irreal. Está condenada por crime de infanticídio. Matou o próprio filho ao nascer, mas antes devia ter matado outros, como matará os futuros com o seu olhar de círio perpetuamente ardendo na negridão das olheiras. Ao vê-la, lembra-se a gente das teorias dos criminalistas passados e principalmente das ideias de Maudsley sobre o crime e a loucura.

_ Como te chamas?
_ Olívia.
_ Você não gosta das crianças?

Um gesto negativo de cabeça.

_ Antes já procurara tomar remédios para abortar, não?

É uma pergunta sem razão de ser. A menina curva a cabeça e desata a Chorar. Tudo quanto se lhe perguntar sobre o seu horror à maternidade, Olívia é incapaz de negar. Não deve estar nessa enfermaria de detenção, mas num dos pátios do hospício. E, encolhida, Com os Cabelos esparsos nos travesseiros, a pele ressequida como um pergaminho muito tempo esfregado por óleos bárbaros, essa infanticida de quinze anos arreganha a face num ricto de angústia Como um Cadáver de asteca ao ressurgir à

face da terra.

Neste momento, porém, houve um rebuliço. Chegavam os presos da Colônia de Dois Rios à disposição do chefe. Fora ouviam-se os rugidos de um negro abjeto, o Bronze, enleado numa Camisola-de-força, esperneando, espumando. Dois outros adolescentes bem dispostos, de chinelos novos que sorriam perfeitamente contentes com a sorte, perfilavam-se ao longe entre os guardas.

Não tivemos tempo de Chegar à janela. Pelo Corredor vinham vindo três mulheres. Traziam toda a roupa de zuarte e um lenço Cobrindo o Crânio pelado. A primeira era magra, magríssima, tossindo a Cada instante, Com as mãos em Cruz sobre o peito. De vez em quando parava e a sua face exprimia a horrenda e inexprimível dor de uma agonia sem fim. A segunda, apagada, Com os braços abertos, parecia não sentir mais as pernas. A última, com uma face de burguesa honesta na miséria, tinha um ventre enorme, um ventre hidrópico, um ventre colossal. Os guardas iam-nas tocando.

_ Eia! pra diante! eia!

As duas primeiras passaram sem Ver, com O Olhar insensível. A última parou.

_ Não pOssO mais. Vim para fazer Operação. Oh! O meu martírio! De qualquer forma, sr. guarda, eu morro, mas deixe-me ao menos morrer quando chegar a hora definitiva.

_ Mas esta mulher é inteligente!

_ Pois se até ensina a ler.

Aproximei-me:

_ Ah! meu carO senhor, por piedade, peça ao ministro o meu perdão. Há três anos que sofro. O ódio de um inspetor, a falta de amigos e de proteção reduziram-me a este lamentável estado. Venho da colônia. Não me trataram como uma presa, trataram-me como uma pessoa digna de piedade. E apesar disso eu estou assim. Perdão para mim!

_ E a senhora chama-se?

_ Maria José Correia. Fui professora pública. .

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