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A quarta ideia, a última, é a ideia fixa, a ideia Constante de todos os detentos _ escapar, ficar livre, burlar a prisão, apanhar novamente a liberdade. Os reincidentes Conhecem as Coisas do foro tanto quanto Com os advogados de porta de xadrez: sabem chicanas, artigos do Código, contam os dias de prisão, fazem petições de habeas-corpus, assinam declarações de inocência de outros, para que outros assinem declarações idênticas, vivem numa tensão nervosa extraordinária. A religião, que lhes dá a esperança, o jornal, que lhes lembra a rua, acendem a labareda desse desejo, e é principalmente a ideia da liberdade que modifica o humor dos presos, que faz frequentadas as solitárias, que os torna ora alegres, de uma extrema bondade, ora agitados e terrivelmente maus.

Esses quatro ideais da generalidade dos presos fizeram-me pensar num país dirigido por eles. Um rei perpétuo governaria os vassalos, por vontade de Deus. Os vassalos teriam a liberdade de Cometer todos os desatinos, Confiantes na proteção divina, e a imprensa continuaria impassível no seu louvável papel de fazer Celebridades. Seria muito interessante? Seria quase a mesma Coisa que os governos normais _ apenas Com diferença da polícia na Cadeia, Como medida de precaução. Tanto as ideias do povo são idênticas, quer seja ele Criminoso quer seja honesto!

Mulheres Detentas

Quando entramos, algumas detentas lavavam a primeira sala, sob o olhar severo de um guarda.

_ Tudo limpo?

_ Saiba V. Sa que ainda não.

_ Pois apresse, apresse estas mulheres.

O chão de pedra estava cheio de lama. A água suja escorria da soleira da sala em dois grossos fios e as mulheres, de saia arregaçada, com pulos estranhos, davam gritinhos estridentes. Um cheiro especial, esquisito, pairava naquela galeria batida de sol, em que os metais reluziam. Os guardas tinham a fisionomia fechada.

_ Quantas presas?

Há atualmente cinquenta e oito, divididas por três salas, uma das quais é enfermaria. A falta de lugares, a promiscuidade é ignóbil nesses compartimentos transformados em cubículos. A maioria das detentas, mulatas ou negras, fúfias da última classe, são reincidentes, alcoólicas e desordeiras. Olho as duas salas com as portas de par em par abertas e fico aterrado. Há caras Vivas de mulatinhas com olhos libidinosos dos macacos, há olhos amortecidos de bode em faces balofas de aguardente, há perfis esqueléticos de antigas belezas de calçada, sorrisos estúpidos navalhando bocas desdentadas, rostos brancos de medo, beiços trêmulos, e no meio dessa caricatura do abismo as cabeças oleosas das negras, os narizes chatos, as carapinhas imundas das negras alcoólicas. Alguns desses entes, lembra-me tê-los visto noutra prisão, no pátio dos delírios, no hospício. É possível? Haverá loucas na detenção como há agitados e imbecis? O Dr. Afrânio Peixoto, o psiquiatra eminente, dissera-me uma vez, apontando o pátio do hospício, onde, presas de agitação, as negras corriam clamando horrores aos céus: _ Há algumas que têm quatro e cinco entradas aqui. Saem, tornam a beber e Voltam fatalmente.

As mulheres tinham corrido todas para os fundos das salas, casquinando risinhos de medo. Naquela tropa, as alcóolicas andavam trôpegas, erguendo as saias com um ar palerma. Indiquei ao guarda uma delas.

_ Venha cá, gritou ele.

As mulheres agitaram-se. Eu? Sou eu? Seu guarda, posso ir? O guarda tornou a chamar a massa abjeta e foi quase empurrada pelas outras que ela veio, meio envergonhada.

_ Quantas Vezes esteve no hospíCio?

A negra olhou para nós. Os seus olhos amarelos, raiados de sangue, abriram-se num esforço e ela balbuciou.

_ Duas, sim senhor.

O álcool ou a preparava para a tísica rápida ou, dias depois, atiraria írremissívelmente para o manicômio.

As outras criaturas, dotadas de Curiosidade irresistível, tinhamse aproximado das portas entre risadinhas e cochichos depravados, e eu pude assim, com Calma e tranquilidade, apreciar e interrogar todas as flores de enxurrada, todas essas venenosas parasitas do amor torpe num Campo perdido do jardim do crime. Essas mulheres estão na detenção por Coisas fúteis, Coisas que cometem diariamente até à cólera final dos inspetores tolerantes ou a vingança de algum soldadinho apaixonado.

São moradoras do morro da Favela, das ruelas próximas ao quartel general, dos becos que deságuam no Largo da Lapa, das Ruas da Conceição, S. Jorge e Núncio. Quase sempre brigavam por Causa de uma “tentação” que tentava e pretendia satisfazer as

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