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desfastio erudito do defunto Marquês de Maricá.

Os cientistas da penitenciária veriam nisso um problema a resolver, o problema de emendar o criminoso. Um, a quem eu contava o desplante dos recidivos, assegurou-me:

_ É preciso aplicar o método inglês, as sentenças cumulativas, sistema de penas progressivas cuja duração é calculada pelo quociente das reincidências. Um preso condenado por ladroeira, se entrar outra Vez pelo mesmo crime, tem a pena duplicada; se entrar terceira, triplicada, e assim por diante. Isto acabaria com a falha do código, o broquel de defesa dos gatunos, que nos seus artigos admiráveis tem a generalidade da pena para toda a sorte de escapatórias. Leia o dr. Monat, antigo diretor geral prisões na Índia; leia Baker, juiz de paz em Gloucester; leia Browne. As reincidências, eles o provam, diminuíram em toda a Inglaterra.

Outros perdiam-se em frases confusas, falando da necessidade urgente de reformar o nosso sistema de detenção, de pôr em ação os dois meios definitivos de corrigir: moralizar e intimidar. Eu achei mais interessante estudar as ideias e os estados da alma dos detentos.

A detenção tem ideias gerais. A primeira, a fundamental, definitiva, é a ideia monárquica. Com raríssimas exceções, que talvez não existam, todos os presos são radicalmente monarquistas. Passadores moeda falsa, incendiários, assassinos, gatunos, capoeiras, mulheres abjetas, são ferventes apóstolos da restauração. Não falam, não fazem meetings, não escrevem artigos como o Dr. Cândido de Oliveira ou o conselheiro Andrade

Figueira _ sentem intensamente, sem saber explicar a razão desse amor.

_ E verdade; qual o governo que prefere? Eles riem, meio tímidos.

_ Eu prefiro a monarquia.

_ Por quê?

Sim! Por que malandros da Saúde, menores vagabundos, raparigas de vinte anos que não podem se recordar do passado regime, são monarquistas? Por que gatunos amestrados preferiam sua majestade ao dr. Rodrigues Alves? É um mistério que só poderá ter explicação no próprio sangue da raça, sangue Cheio de revoltas e ao mesmo tempo servil; sangue ávido por gritar não pode! mas desejoso de ter a certeza de um senhor perpétuo.

O fato Curioso é que para esta gente, de outro lado da sociedade, não basta pensar, é preciso trazer a marca das próprias opiniões no lombo. Raríssimos são os presos que na detenção não são tatuados; raros são aqueles que entre as tatuagens _ lagartos, corações, sereias, estrelas _ não têm no braço ou no peito a Coroa imperial.

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A outra ideia e a crença de Deus _ uma verdadeira Crise religiosa. Rezar, pedir a Deus a sua salvação, trazer bentinhos ao pescoço, ter entre os seus papéis imagens sagradas, não significa, de resto, regeneração.

Homens da espécie do Carlito ou do CardosinhO fazem o sinal da cruz aO levantar da cama para matar um homem horas depois; Serafim Bueno, um criminoso repugnante, tem uma fé surda no milagre e em Nosso Senhor; o Carrasco, gatuno torpe, treme quando se fala nO castigo dO céu _ mas nenhum deles se regenera. Deus é apenas a salvação das suas patifarias na terra, e tanto é assim que não há desordeiro assassino em cuja mão direita não apontem, tatuadas, as cinco chagas de Cristo. Sabem a interpretação dada a este sinal?

A piedosa interpretação de que com a mão, ajudada por tão grande símbolo, não se atira à cara de um sujeito uma tapOna sem que O contendor não caia ao chão!

Esses pobres entes são o normal. Há, entretanto, verdadeiras crises místicas como a desse convulsivo tratante Afonso Coelho. Afonso escreve diariamente cartas fervorosas de regeneração; reza, manda epístOlas insultuosas a Outros detentos, verberandoos porque a sua fé nãO é forte. Em todas as cartas há errOs de ortografia lamentáveis e um sopro de milagre. AO mesmo tempo, porém, Afonso Coelho esgaravata nO pobre cérebro O meio de fugir. Arranja limas e corta varões de ferro. O administrador, atento, quando o trabalho está pronto, muda-o de cubículo. Vai ao tribunal e, em caminho, ainda na detenção, atira-se como um tigre, tentando escalar um portão. Os guardas têm que O puxar pelas pernas e lutar com ele, braço a braço. Traça planos de fuga, escreve indicações a amigos para abrirem portas num murO, combina fugas estranhas. O administrador guarda uma porção destas cartas, interceptadas por sua ordem. Ultimamente, visitado por um jornalista a quem dá a honra de falar, depois de discutir direitos, de meter os pés pelas mãos com a sua vaidosa mania de querer ser inteligente, acabou dizendo:

_ Qual, meu amigo, já estou muito conhecido aqui. Se sair, embarco para a Europa. Lá o meio é maior.

E, cheio de doçura, enquanto desesperadamente a sua esperteza se arremete contra as grades preventivas, esse mesmo homem sonha com a Virgem, bate nos peitos e faz crer aos ingênuos ou

aos interessados reformadores que e um santo no caminho de Damasco.

A terceira ideia quase obsessiva é a imprensa. Há os que têm medo de desprezá-la, há os que fingem desprezá-la, há os que a esperam aflitos. O jornal é a história diária da outra vida, cheia de sol e de liberdade; é o meio pelo qual sabem da prisão dos inimigos, do que pensa o mundo a seu respeito. Não há cubículo sem jornais. Um reporter é para essa gente inferior o poder independente, uma necessidade como a monarquia e o céu. Anunciar um reporter nas galerias é agitar loucamente os presos. Uns esticam papéis, provando inocência; outros bradam que as locais de jornais estavam erradas, outros escondem-se, receando ser conhecidos, e é um alarido de ronda infernal, uma ânsia de olhos, de clamores, de miséria... Os desordeiros acusados de ferimentos graves, com muitas mortes na consciência são, por sua natureza, vingativos e conhecem bem os reporters. E, entretanto, apesar das notícias cruéis, nunca nenhum se atreveu a tentar uma agressão. José do Senado pede:

_ É com a imprensa que eu conto. O senhor foi cruel, porque não sabia...

Carlito teve, nesse dia, uma frase completa:

_ Eu sei que foi o senhor o autor daquela descompostura contra mim, no jornal. Mas também estou vingado. Se não fosse eu, o sr. não escrevia tanto.

Os outros rojam, como as beatas nos altares dos santos impassíveis.

_ Não fale de mim, seu reporter; deixe o meu nome sossegado, não fale!

E no dia seguinte percorrem, loucos, a folha para ver negrejar no papel poderoso a sua celebridade.

Há mesmo um preso, Antônio F., que me entregou um artigo de psicologia da imprensa. Antônio acha que, sendo o papel da imprensa educar os povos, ensinar os homens a serem até bons esposos, o nosso jornalismo é tudo quanto há de errado, de imbecil e de vazio. “Nada!” brada ele; “que aproveitam à nobreza, ou à plebe, estas banalidades! Nada! Que Valem, portanto? Nada!... E nada, nada e nada milhões de Vezes nada repercutia o eco do Prata ao Pará, se não corrigirem a grande

força.”

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