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Os políticos vivem no meio da rua aqui, na China, em Tombuctu, na França; os presidentes de república, os reis, os papas, no pavor de uma surpresa da rua _ a bomba, a revolta; os chefes de polícia são os alucinados permanentes das ruas; todos quantos querem subir, galgar a inútil e movediça montanha da glória, anseiam pelo juízo da rua, pela aprovação da via pública, e há na patologia nervosa uma vasta parte em que se trata apenas das moléstias produzidas pela rua, desde a neurastenia até ã loucura furiosa. E que a rua chega a ser a obsessão em que se condensam todas as nossas ambições. O homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisava interessar ã rua. Começou pois fazendo discursos em plena ágora, discursos que, desde os tempos mais remotos aos meetings contemporâneos da estátua de José Bonifácio, falam sempre de coisas altivas, generosas e nobres. Um belo dia, a rua proclamou a excelente verdade: que as palavras leva-as o vento. Logo, nós assustados, imaginamos o homem-sandwich, o cartaz ambulante; mandamos pregar-lhe, enquanto dorme, com muita goma e muita ingenuidade, os cartazes proclamando a melhor conserva, o doce mais gostoso, o ideal político mais austero, o vinho mais generoso, não só em letras impressas mas com figuras alegóricas, para poupar-lhe o trabalho de ler, para acariciar-lhe a ignorância, para alegrá-la. Como se não bastassem o cartaz, a lanterna mágica, o homem-sandwich, desveladamente, aos poucos, resolvemos compor-lhe a história e fizemos o jornal _ esse formidável folhetim-romance permanente, composto de verdades, mentiras, lisonjas, insultos e da fantasia dos Gaboriau que somos todos nós...

Há uma estética da rua, afirmou Bulls. Sim. Há. Porque as atrizes de fama, os oradores mais populares, os hércules mais cheios de força, Os produtos mais evidentes dos blocos comerciais, vivem de procurar agradá-la. Desse Orgulho transitório surgiu para a rua a glória policroma da arte. O temor de serem esquecidos criou para cada uma a roupagem variada, encheu-as como Melusinas de pedra, como fadas cruéis que se teme e se satisfaz, de vestidos múltiplos, de cores variegadas, de fanfreluches de papel, da ardência fulgurante das montras de cambiantes luzentes; deu-lhes uma perpétua apoteose de sacrifício à espera do milagre dO lucro ou da popularidade. A estética, a ornamentaçãO das ruas, é O resultado do respeito e do

medo que lhes temos...

No espírito humano a rua chega a ser uma imagem que se liga a todos Os sentimentos e serve para todas as comparações. Basta percorrer a poesia anônima para constatar a flagrante Verdade. É quase sempre na rua que se fala mal do próximo. FOlheemOs uma coleção de fados. Lá está a ideia:

Adeus, ó Rua Direita
Ó Rua da Murmuração.
Onde se faz audiência

Sem juiz nem escrivão.

Aliás muito tímida, comO devendo ser cantada por quem tem culpa no Cartório. Mas, se um apaixonado quer descrever o seu peito, só encontra uma comparação perfeita.

O meu peito é uma rua

Onde o meu bem nunca passa,
E a rua da amargura

Onde passeia a desgraça.

Se sente o apetite de descrever, os espécimens são sem conta.

Na rua do meu amor
Não se pode namorar:
De dia, velhas à porta,

De noite, cães a ladrar.

E é suave lembrar aquele sonhador que, defronte da janela da amada e desejando realizar o impossível para lhe ser agradável, só pôde sussurrar esta vontade meiga:

Se esta rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
De pedrinhas de brilhante

Para meu bem passar.

O povo observa também, e diz mais numa quadra do que todos nós a armar o efeito de períodos brilhantes. Sempre recordarei um tocador de violão a cantar com lágrimas na voz como diante do inexorável destino:

Vista Alegre é rua morta
A Formosa é feia e brava
A Rua Direita é torta

A do Sabão não se lava...

Toda a psicologia das construções e do alinhamento em quatro versos! A rua chega a preocupar os loucos. Nos hospícios, onde esses cavalheiros andam doidos por se ver cá fora, encontrei planos de ruas ideais, cantores de rua, e um deles mesmo chegou a entregar-me um longo poema que começava assim:

A rua...

Cumprida, cumprida, atua...

Olê! complicada, complicada, alua
A rua

Nua!

Essa ideia reflete-se nas religiões, nos livros sagrados, na arte de todos os tempos, cada vez mais afiada, cada vez mais sensível. Na literatura atual a rua é a inspiração dos grandes artistas, desde Victor Hugo, Balzac e Dickens, até às epopeias de Zola, desde o funambulismo de Banville até o humorismo de Mark Twain. Não há um escritor moderno que não tenha cantado a rua. Os sonhadores levam mesmo a exagerá-la, e hoje, devido certamente à corrente socialista, há toda uma literatura em que a alma das ruas soluça. Os poetas refinados levam a mórbida inspiração a cantar os aspectos parciais da rua. Como os românticos cantavam os pés, os olhos, a boca e outras partes do corpo das apaixonadas, eles cantam o semblante das casas vazias, os revérberos de gás Como Rodenbach:

Le dimanche, en semaine, et par tous les
temps

L,un est debout, un autre, il semble, slagenouille.
Et chacun se sent seul comme dans une foule.
Les revérbéres des banlieues

Sont des cages oú des oiseaux déplient leurs queues.

Os pregões, as calçadas, e houve até um _ Mário Pederneiras _que nos deu a sutilíssima e admirável psicologia das árvores urbanas:

Com que magoado encanto

Com que triste saudade

Sobre mim atua

Esta estranha feição das árvores da rua.
E elas são, entretanto,

A única ilusão rural de uma Cidade!

As árvores urbanas
São, em geral, Conselheiras e frias
Sem as grandes expansões e as grandes alegrias

Das provincianas.

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