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O exibicionismo, o reclamo, a Vaidade, estas coisas que enlouquecem Sarah Bernhardt e talvez a todos nós, enlouquecem também presos. Há a princípio uma hesitação. Depois, os documentos são abundantes. Ser poeta é ser alguma coisa mais do que preso, e um negralhão capoeira, um assassino como o Bueno ou o José do Senado, após o testemunho da rima, falam mais livremente e com maior franqueza. Em duas semanas de detenção colecionei versos para publicar um copioso cancioneiro da cadeia. Há poesias de todos os gêneros, desde o lundu sensual até à nênia chorosa.

Este lundu do famoso Carlos F. P. chega a ser comovente:

Céus...meus! por piedade
Tirai-me desta aflição!
Vósl... socorrei os meus filhos

Das garras da maldição!

E o estribilho mais amargo ainda:

São horas, são horas
São horas de teu embarque
Sinto não ver a partida

Dos desterrados do Acre.

O Dr. Melo Morais, que conhece os segredos do violão, deve decerto imaginar o efeito destas palavras, à noite, na escuridão

com os bordões a vibrar até às estrelas do céu...

O Amor, de resto, inunda o Verso detento. Há por todos os lados choros, soluços, lábios de coral, saudades, recordações, desesperos, rogos:

Não sejas tão inclemente,

Atende aos gemidos meus.

E um encontrei eu que me repetiu, com os olhos fechados, o seu último repente:

Se eu pudesse desfazer
Tudo aquilo que está feito,
Só assim teu coração

Não veria contrafeito.

Era um rapaz pálido, como os rapazes fatais nos romances de 1850, mas com uns biceps de lutador.

Quantos poetas perdidos para sempre, quanta rima destinada ao olvido da humanidade! Cheio de interesse, um papel que me caia nas mãos, com erros de ortografia, era para mim precioso. Mas afinal, um dia, ao sair da detenção com os bolsos cheios de quadras penitenciárias, remoendo frases de psicologia triste, encontrei no bonde um poeta dos novos, que, há vinte e cinco anos, ataca as escolas Velhas.

_ São uns animais! bradou ele, logo após um aperto de mão imperativo. Este país está todo errado. Há mais poetas que homens. Eu, governo, mandava trancafiar metade, pelo menos, ali, com Castigos Corporais uma vez por mês!

Mal sabia ele que a detenção já está cheia.

As Quatro Ideias Capitais dos Presos

As vezes, numa volta pelo pátio, a conversar com Obed Cardoso, eu via o elegante Dr. Saturnino de Matos passar, como se fosse dar milho às pOmbas. E, se depois de admirar o Dr. Saturníno apontavam-me, enfiado no zuarte dO estabelecimento, com o número de metal à cinta, um modesto gatunO Ou um simples assassino cujo comportamento exemplar Os transformava em serventes, eu deixava o gentil Obed e gozava O calão dessas interessantes flores de patifaria.

Há na detenção reincidentes exemplares e casos de psicologia curiOsíssimOs. O Sargento da Meia-Noite, ladrão temível, uma espécie de transformista da infâmia, é passar Os umbrais dO jardim Onde descansa o crime, para se tornar um cordeiro artista, uma espécie de frade medievo. RecolhidO aO cubículo, inaugura lOgO a sua arte de miolo de pãO. Faz flOres, bonecos, santos, animais; pinta-Os, remira-os, manda-os vender. Parece regenerado. TOdOs sabem, entretanto, que, uma vez livre, o Sargento não resistira à tentação de invadir a casa alheia. Os “punguistas”, inofensivos lá dentro, tão certos estão de continuar a roubar que o Braga Bexiga me dizia:

_ No dia em que sair, tomo logo um bonde e limpo a primeira carteira.

_ Mas é difícil.

_ Para quem conhece a arte não há dificuldades. Eu trabalho desde criança e tive como professor o Zezinho.

_ Vamos a ver esse trabalho.

_ Se V. Sa me dá licença, eu vou tirar duas notas de duzentos que o sr. Obed pôs agora no bolso da calça.

Na outra extremidade da sala, Obed, sem que ninguém desse por isso, acabara de contar o seu dinheiro e de metê-lo no bolso da calça. Bexiga, trêmulo, com os olhinhos piscos, continuava ali a exercitar as suas criminosas observações. Capoeiras, assassinos, como Carlito e outros, reincidentes, condenados a trinta anos, exprimem a certeza de que continuarão lá fora a vida anterior. Carlito, mesmo, disse-me um dia:

_ Deus aperta, mas não enforca!

Máxima muito mais profunda que quantas escritas pelo

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