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Tenho aqui um para o senhor. Venha cá. E preciso que ela não veja.

Vamos para o saguão. O guarda desdobra por trás da jarra Tiradentes, de Benedito Machado, um embrulho, e eu vejo valetes, ases e damas admiravelmente pintados em pedaços dos livros de edificação moral. Há mesmo um rei de paus que tem nas Costas S. Paulo. E no pátio, a inglesa, na sua obra regeneradora, espera Com Calma que o administrador consinta em mais uma distribuição de folhetos, para o fabrico de futuros baralhos!

O Clamor das galerias parecia diminuir, enquanto à porta do pátio havia o mesmo atropelo de pessoas, agora querendo sair. Os protestos prorrompiam entre frases de Cólera surda e frases de deboche. Uma rapariga com o filhinho nos braços bradava: _ Não volto mais! Não falei ao José. É impossível chegar perto da grade! _ Contente-se comigo, dona! _ A mulherzinha vinha Com sede! _ Ó Antônio, vamos tomar uma lambada! _ Ih! menino, já quebrei água hoje como quê! E as vozes alçavam-se, cruzavam-se; faziam naquela porta, como a ornamentação da raiva e da sem-vergonhice um baixo-relevo vivo de entrada de penitenciária, enquanto, suando, bufando, com os Cartões na mão, aquela gente _ mulatos, pretos, italianos, portugueses, fúfias e rufiões, tristes mulheres e trabalhadores de fato endomingado _ dava Cotoveladas e empurrões, no desejo Cada qual de sair em primeiro lugar.

Um sino pôs-se a tocar. Era o fim da visita. Os sons vibravam, duros, como uma ordem. Há sinos que choram, sinos que cantam, sinos que são tristes; há sinos feitos para dobrar a finadOs, como os há para cantar missas em ações de graça. Aquele sinO era um aguilhão. O pátio esvaziava. A tropa partia, tropa desoladora, amiga do víciO e dO crime.

Foi então que eu vi aparecer, carregada de embrulhos, com a coifa branca a ondular as duas grandes asas, a figura de bondade da irmã Paula. O guarda tirara o boné, cheio de um carinhoso respeito. Os malandros e Os desgraçados, ainda à porta, tinham nos Olhos uma expressão de timidez e de alegria.

_ Bonjour, meu filhO, fez a irmã com um gesto cansado. O Sr. administrador? O guarda disse qualquer coisa, comOvidO. Ela arrumou embrulhos, enxugou as mãos, subiu as escadas da secretaria. A sua coifa alva parecia uma grande borboleta branca.

_ E a única visita que consola os presos, é a única que eles respeitam, murmurava O guarda. Quando ela fala, tão simples e tão meiga, até as pedras parece quererem-lhe bem. Quando Jesus passou pOr este mundo, devia ter sido assim bom para todos Os desgraçados.

De nOvO a coifa apareceu, borboleta de esperança adejandO as grandes asas brancas e, como se fizesse a obra mais natural deste mundo, a irmã Paula disse:

_ Vamos ver Os desgraçadinhos. Trago-lhes hOje umas coisas. O Sr. administrador é muitO bom, permite.

E assim, tocado pela sua presença, a mim me pareceu que o doloroso canto do jardim do crime se transformava no horto das rosas de que fala S. Tomás de Kempis...

Versos de Presos

O criminoso é um homem como outro qualquer. No primeiro momento, sob o pavor dos grandes muros de pedra, com um guarda que nos mostra os indivíduos como se mostrasse as feras de um domador, a impressão é esmagadora. Vê-se o crime, a ação tremenda ou infame; não se Vê o homem sem o movimento anormal, que pôs à margem da Vida. Quando a gente se habitua a Vê-los e a falar-lhes todo o dia, o terror desaparece. Há sempre dois homens em cada detento _ o que cometeu o crime e o atual, o preso. Os atuais são perfeitamente humanos, Só uma Variedade da espécie causa sempre náuseas; os ladrões, os “punguistas”, os “escrunchantes”, porque dissimulam, mentem e têm, constante no riso e na palavra, um travo de cinismo. Os outros não. Conversam, contam fatos e pilhérias, arranjam o pretexto de ir lavar a roupa para apanhar um pouco de sol no lavadouro, são homens capazes até de sentimentos amáveis.

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Ora, este país e essencialmente poético. Não há cidadão, mesmo maluco, que não tenha feito Versos. Fazer versos é ter uma qualidade amável. Na detenção, abundam os bardos, os trovadores, os repentistas e os inspirados. São quase todos brasileiros ou portugueses, criados na malandragem da Saúde. A média poética é forte. Desordeiros perigosos, assassinos vulgares Compõem quadras ardentes, e há poetas de todos os gêneros, desde os plagiários até os incompreensíveis. Não sei se a timidez ou outra razão mais obscura os faz assinar as composições poéticas apenas Com as iniciais e quando muito com as iniciais precedidas do nome de batismo.

_ Assine você o seu nome por extenso! dizia o guarda.

O poeta detento hesitava, punha as iniciais e, por baixo, entre parêntesis, escrevia o nome. As iniciais têm que vir fatalmente, são o complemento necessário ao fim da obra, Por quê? E misterioso, mas verdadeiro.

Os assuntos escolhidos pelas iniciais superiores da detenção abrangem todas as modalidades do sentir. Como há plagiários _ o Antônio, crime de ferimentos, que se intitula autor da modinha Nasci para te Amar, _ há simbolistas que escrevem coisas destas:

Pobre flor que mal nasceste, fatal
Foi a tua sorte, que o primeiro

Passo que deste com a morte deste.
Deixar-te é Coisa triste. Cortar-te?

É Coisa forte, pois deixar-te com vida

E deixar-te com a morte.

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