Imagens da página
PDF
ePub

de sete meses. Os processos, porém, não dão custas, e as pretorias deixam dormir em paz a formação da culpa, enquanto na indolência dos cubículos, no contacto do crime, rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e infâmias de que há memória. Chega a revoltar a inconsciência com que a sociedade esmaga as criaturas desamparadas. Nessa enorme galeria, onde uma eterna luz lívida espalha um vago horror, vejo caixeiros portugueses com o lápis atrás da orelha, os olhos cheios de angústia; italianos vendedores de jornais, encolhidos; garçons de restaurant; operários, entre as caras cínicas dos pivettes reincidentes e os porqueiros do vício que são os chefes dos cubículos. Todos invariavelmente têm uma frase dolorosa:

_ É a primeira vez que eu entro aqui!

E apelam para os guardas, sôfregos, interrogam os outros, trazem o testemunho dos chefes.

Por que estão presos? José, por exemplo, deu com uma correia na mão de um filho do cabo de um delegado; Pedro e Joaquim, ao saírem do café onde estão empregados, discutiram um pouco mais alto; Antônio atirou uma tapona à cara de Jorge. Há na nossa sociedade moços valentes, cujo sport preferido é provocar desordens: diariamente, senhores respeitáveis atacam-se a sopapo; jornalistas velho-gênero ameaçam de vez em quando pelas gazetas, falando de chicote e de pau a propósito de problemas sociais ou estéticos, inteiramente opostos a esses aviltantes instrumentos de razão bárbara. Nem os moços valentes,

nem os senhores respeitáveis, nem os jornalistas vão sequer a delegacia.

Os desprotegidos da sorte, trabalhadores humildes, entram para a detenção com razões ainda menos fundadas.

E a detenção é a escola de todas as perdições e de todas as degenerescências.

O ócio dos cubículos é preenchido pelas lições de roubo, pelas perversões do instinto, pelas histórias exageradas e mentirosas. Um negro, assassino e gatuno, pertencente a qualquer quadrilha de ladrões, perde um cubículo inteiro, inventando crimes para impressionar, imaginando armas de asas de lata, criando jogos, armando rolos. Oito dias depois de dar entrada numa dessas prisões, as pobres Vítimas da justiça, quase sempre espíritos incultos, sabem a técnica e o palavreado dos chicanistas de porta de xadrez para iludir o júri, lêem com avidez as notícias de crimes romantizados pelos repórteres e o pavor da pena é o mais intenso sugestionador da reincidência. Não há um ladrão que, interrogado sobre as origens da vocação, não responda:

_ Onde aprendi? foi aqui mesmo, no cubículo.

Recolhida à sombra, nesse Venenoso jardim, onde desabrocham todos os delírios, todas as nevroses, é certo que a criança sem apoio lá fora, hostilizada brutalmente pela sorte, acabará Voltando. Mais de uma Vez, na cerimônia indiferente e glacial da saída dos presos, eu ouvi o chefe dos guardas dizer:

_ Vá, e vamos a Ver se não voltas.

Como mais de uma vez ouvi o mesmo guarda, quando Chegavam novas levas, dizer para umas caras já sem vergonha:

_ Outra vez, seu patife, hein?

Mas que fazer, Deus misericordioso? Nunca, entre nós, ninguém se ocupou Com o grande problema da penitenciária. Há bem pouco tempo, a detenção, suja e imunda, Com Cerca de novecentos presos à disposição de bacharéis delegados, era horrível. Passear pelas galerias era passear Como o Dante pelos Círculos do Inferno, e antes do Sr. Meira Lima, Cuja Competência não necessita mais de elogio, o Cargo de administrador estava destinado a Cidadãos protegidos, sem a mínima noção do que vem a ser um estabelecimento de detenção.

Qual deve ser o papel da polícia numa cidade civilizada? Em todos os Congressos penitenciários, até agora tão úteis como o nosso último latino-americano, ficou claramente determinado. A polícia é uma instituição preventiva, agindo Com o seu poder de intimidação, e o Dr. Guillaume e o Dr. Baker chegaram, em Estocolmo, às conclusões de que uma boa polícia tem mais força que o código penal e mais influência que a prisão.

f

A nossa polícia e o Contrário. Para que a detenção dê resultados, faz-se necessário seja Conforme ao fim predominante da pena, Com o firme desejo de reformar e erguer a moral do culpado. Que fazemos nós? Agarramos uma criança de Catorze anos porque deu um Cascudo no vizinho, e Calma, indiferente, cinicamente, começamos a levantar a moral desse petiz dando-lhe como companheiros, durante os dias de uma detenção pouco séria, o Velhinho, punguista conhecido, o Bexiga Fraga, batedor de carteira e um punhado de desordeiros da Saúde!

A princípio tomei-lhes Os nomes: Manuel Fernandes, Antônio Oliveira, Francisco Queirós, Martins, Francisco Visconti, Antônio Gomes.

Mas era inútil. Para que, se o crime está na própria orgarnizaçãO da polícia? Está marcado! E eu ia deixar esse canto do jardim sinistro quando vi uma pobre criancinha, magra, encostada à parede, O Olhar já a se encher de sombra.

_ COmO te Chamas?

_ José Bento.

Tinha catorze anos e era acusado de crime de morte. Fora por acaso, O outro dissera-lhe um palavrão... Quem sabe lá?

Talvez fosse. E, cheio de piedade, perguntei:

_ Vamos lá, diga O que O menino quer. Prometo dar.

_ Eu? Ah! os outros são maus... são valentes sim, senhor... metem raiva à gente... Até têm armas escondidas! A gente tem que se defender... Eu tinha Vontade... de uma faca...

E cobriu o rosto com as mãos trêmulas.

« AnteriorContinuar »