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pescoço do pobre rapaz, de acender as velas, de cantar? diga: era?

Ela riu como uma fera bOceja, e disse num arranco de todo O ser:

_ Eu era, sim, senhor...

Que estranha psicologia a dessas flores magníficas do jardim do crime! Que pOderOsO transformador O amor! Bem dizia Tennyson ao evOcá-lo: Thou madest Life, in man and brute, thou madest Death... Eu começara a minha visita à beira do desespero, na púrpura de uma moita de lírios vermelhos.

Com Os corações em sangue, vi uma coleção de assassinos, desde um velho lamentável até uma criança honesta, postos fOra da sociedade pelo desvario, pela loucura que a paixão sopra no mundo. A mulher, que Os poetas levam a cantar, Vênus inconsciente e perversa, Lilith, lendária, surgia nessa ruína, perdendo, estragando, corroendo, matando, e eu sentia, no Olhar e no gesto de cada uma das vítimas do amor, o desejo de guardar o perfil das suas destruidoras. Oh! esses seres, que Schopenhauer denominava animais de cabelos compridos e ideias curtas, que formidável Obra de destruição cometem! SãO a torrente a que ninguém pode resistir, a força dOminadOra da maldade, Os mOlOchs da alegria. As gerações futuras, livres dos nossos velhos deuses, devem, para que a harmonia as guie, levantar nas cidades um altar votivo onde os adolescentes possam sacrificar, todas as manhãs à ira de Vênus sanguissedenta.

Mas as minhas reflexões pararam. Como tocasse um sino, pela escada da direita desceu um cavalheiro elegante que tapava o rosto com o lenço. E logo depois, grácil e airosa, com um rico vestido preto, caminhou pela galeria, olhando altivamente os presos, uma mulher cuja fronte parecia a pura fronte da inocência.

O guarda curvou-se:
_ O Dr. Saturnino e a esposa...

Eu vira o último crime de amor da detenção.

A Galeria Superior

A galeria superior é dividida por um tapume, com portas de espaço a espaço para o livre trânsito dos guardas. Os presos não podem ver os cubículos fronteiros. Os olhos abrangem apenas os muros brancos e a divisão de madeira que barra a cal das paredes. Quando a vigilância diminui, falam de cubículo para cubículo, atiram por cima do tapume jornais, cartas, recordações.

Estão atualmente na galeria duzentos e trinta e oito detentos. A aglomeração torna-os hostis. Há confabulações de ódio, murmúrios de raiva, risos que cortam como navalhas. Com o sentido auditivo educadíssimo, basta que se dirija a palavra baixo a alguém do primeiro cubículo para que o saibam no último. E então surgem todos, agarram-se às grades, com o olhar escarninho dos bandidos e a curiosidade má que lhes decompõe a cara.

Ah! essa galeria! Tem qualquer coisa de sinistro e de canalha, um ar de hospedaria da infâmia à beira da vida. Nos cubículos há, às vezes, dezenove homens Condenados por Crimes diversos, desde os defloradores de senhoras de dezoito anos até os ladrões assassinos. A promiscuidade enoja. No espaço estreito, uns lavam o chão, outros jogam, outros manipulam, Com miolo de pão, santos, flores e pedras de dominó, e há ainda os que escrevem planos de fuga, os professores de roubo, os iniciadores dos vícios, os íntimos passando pelos ombros dos amigos o braço caricioso... Quantos crimes se premeditam ali? Quantas perversidades rebentam na luz suja dos cárceres preventivos? Saciados da premeditação, há os jornais que lhes citam os nomes, há o desejo de possuir uma arma, desejo capaz de os fazer aguçar asas de CaneCa, o aço que prende a piaçaVa das Vassouras, as colheres de sopa, e há ainda o jogo. Nesses cubículos joga-se mais de quarenta espécies de jogos. Eu só Contei trinta e sete, dos quais os mais originais _ o Camaleão, a mosca, o periquito, o tigre, a escova, o osso, a sueca, o laço, as três Chapas _ são prodígios de malandragem. E nenhum deles se recusa aos parceiros. Quando algum desconhecido passa, deixam tudo, precipitam-se, alguns nus, outros em ceroulas, e há como um panorama sinistro e Caótico, _ negros degenerados, mulatos Com Contrações de símios, caras de velhos solenes, caras torpes de gatunos, cretinos babando um riso alvar, agitados delirantes, e mãos, mãos estranhas de delinquentes, finas e tortas umas, grossas algumas, moles e tenras outras, que se grudam aos varões de ferro Com o embate furioso de um Vagalhão.

Vive naquela jaula o crime multiforme. O guarda aponta o Cecílio Orbano Reis, assassino, na Saúde, de uma mulher que lhe resistira; o João Dedone, facínora cínico; matadores ocasionais, como Joaquim Santana Araújo, quase demente; o Mirandinha, mulato, passador de moeda falsa, se faz passar por advogado; o Barãozinho, gatuno; Bouças Passos, ladrão assassino, Salvador Machado, O íntimo criado da Tina Tatti; negros capangas com as bocas sujas, que resistem à prisão com fúria; desordeiros temíveis como o Eduardinho da Saúde, retorcendo Os bigodes, cheio de langores; sátirOs moços e velhos violadores; o célebre Pitoca, que tem sessenta e seis entradas; rapazes estelionatários e até desvairados, como João Manuel Soares, acusado de tentativa de mOrte na pessoa dO Sr. Cantuária, que leva, numa agitação perpétua, a dizer:

_ Eu sei, foi o bicho... foi por causa dO bicho, hein? Está claro!

Dois baixos-relevos alucinadores, dois frisos da história do crime de uma cidade, Ora alegres, Ora sinistros, cOmO se fossem nascidos da colaboração macabra de um Forain e de um Goya, dois grandes painéis a gotejar sangue, treva, pus, onde perpassam, com um aspecto de bichos lendários, Os estupradores de duas crianças, de sete e de dez anos.

E em meio do charco, fatalmente destinada a desaparecer, a inocência, atirada ali pela incúria das autoridades, flOresce.

Encontro ao ladO de respeitáveis assassinos, de gatunos conhecidos, na trOpa lamentável dOs recidivOs, crianças ingênuas, rapazes dO comércio, vendedores de jornais, uma enorme quantidade de seres que o desleixo das pretorias torna criminosos. Quase todos estão inclusos, ou no artigo 393 (crime de vadiagem), ou nO 313 (Ofensas físicas). Os primeiros não pOdem ficar presos mais de trinta dias, os segundos, sendo menores, mais

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