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de um pretexto. Para que discussões? Deitei-me outra vez, sem poder dormir. Silvéria continuava na sala, remexendo os móveis. Pela madrugada, já os galos tinham cantado e o luar estava desmaiado, ouvi que abriam a porta. Ergui-me, corri. Ela ia pela estrada, Com a trouxa da roupa, ia sem se despedir de mim, que lhe dera tudo, ia embora... Deitei a gritar: “Silvéria! Silvéria! Não vás.” “Adeus!” “Mas tu estás maluca, mulher.” “Não me fales, estou farta.” “Vais para o Herculano?” “Vou, sim, e agora?” “Um homem que podia ser teu filho!” “Talvez seja mais feliz.” “Silvéria! SilVéria!” “Basta de conversa fiada...” Eu então senti um desespero que me sacudia os nervos e não pude mais...

Para ouvir a história, encostara a cabeça na pedra em que os varões de ferro se encravavam. O pobre velho tremia num soluço sem fim. Então, eu lhe estendi a mão sem uma palavra, e segui, Como se tivesse acordado de um horrível pesadelo. O guarda Barros acompanhava-me.

f

_ Pobre homem! Tentou suicidar-se e e preciso uma vigilância extrema para que aqui não tente outra vez contra a própria Vida.

Já os sinais misteriosos Com os quais se correspondem os detentos haviam anunciado uma pessoa estranha ao estabelecimento. Em todos os cubículos, nas galerias, Correra o som anunciador, e nas grades amontoavam-se as Caras dos que não serão em breve da sociedade. Barros parou pouco adiante, apontando-me um homem magro, pálido, com o pescoço embrulhado num cache-nez. O homem CorCoVaVa tossindo, e os seus dois olhos brilhavam como os de um tísico. Ao lado, um português bem disposto sorria.

_ O seu crime?

_ Umas rusgas, tentativa de morte, não fui eu...

_E O seu?

_ Matei minha mulher.

Esse também cOnfessava. Então era verdade? O crime de amor é o único confessável? Acerquei-me cheio de simpatia, e o sujeito magro não esperou que eu lhe perguntasse mais nada. Antes, na ânsia de desabafar, atirou O cache-nez às costas e começou:

_ Chamo-me Abílio Sarano, sOu barbeiro. Sempre fui honesto. É a primeira vez que entro aqui por causa do crime dO Catete. Não sabe? V. Sa nãO sabe? Eu namorei uma moça, d. Geraldina, e com ela casei-me. Dias depois dO nosso casamento minha esposa confessou-me que tinha sido gozada por um negociante, amante de sua própria mãe. Esse homem voltava a persegui-la. Era de noite, eu voltara do trabalho e amava minha senhora. Foi como se O mundo tOdO se desmoronasse. Ela, coitadinha, caíra de joelhos; eu interrogava, querendo saber tudo. “Anda, fala, dize como foi.” O negociante, O biltre forçara-a numa cadeira, e ninguém soubera. Quando acabou, eu estava sem forças e chorava. “E agora, Geraldina, que será de nós? que vai ser de nós?” Ela cOnsOlava-me. Agora, era esquecer esse sujeito odiOso. ACreditei e Começamos a Viver a triste Vida da dúvida. A mãe infame e a família continuavam, pOrém, a seduzi-la. Uma noite, apesar de ser sábado, eu fui cedo para casa. Geraldina estava nervosa. Conversávamos na sala quando a criada veio dizer que um homem procurava a patroa. “Um homem? Espera, vou eu mesmo ver quem é.” No topo da escada estava um cidadão robusto. “d. Geraldina está?”. Num relâmpago compreendi que era ele. “d. Geraldina? Ah! canalha, espera que eu te vou dar a Geraldina!” Saquei do revólver, e minha senhora apareceu assustada: “Fuja, seu Álvaro, fuja! Fuja!”. Ela mandava-o fugir. Como um louco, ergui a arma. Ele descia os degraus da escada e Geraldina tapara-me a passagem. Detonei uma, duas vezes, descemos de roldão. No patamar, o corpo dele jazia. Matei-o, pensei, acabei a minha vida! E deitei a correr. .. Só mais tarde, soube a verdade. As balas tinham ferido minha mulher. Ele

fingira-se morto e escapara são e salvo. E por isso que estou aqui.

O chefe dos guardas chamara-me ao fundo, para a mesa que fica entre as escadas das galerias superiores.

_ Há ainda dois casos interessantes: um menino e uma mulher. Quer ver? Vou mandar buscar o menino. Sente-se.

Eu sentei-me. Por todas as janelas gradeadas, o sol entrava claro e benfazejo. Minutos depois, surgia, trazido pelo guarda, um pardinho cor de azeitona, dessas fisionomias honestas, alheias a devassidões.

_ Como se chama?

Ele tomou uma posição respeitosa, falando bem, com desembaraço.

_ Chamo-me Alfredo Paulino, sim, senhor. Tenho dezoito anos.

_ E já casado?

_ Casei aos dezesseis. Os meus parentes não queriam, mas depois o pai disse: “É melhor mesmo. Ao menos, não ficas perdido”. Eu já ganhava o suficiente para sustentar dignamente a minha família. Casei. Foi nessa ocasião que o Dr. Constantino Néri me ofereceu o emprego de copeiro no palácio de Manaus. Aceitei, e Voltávamos para o Rio quando a bordo encontramos um rapaz de dezoito anos, chamado José.

_ Era bonito o José?

_ Era simpático, sim, senhor, não posso negar. Ficamos tão amigos que, ao chegar, ele foi morar conosco. Primeiro, tudo andou direito, mas depois começaram os cochicos, as frases, as cartas anônimas. Era preciso tomar uma resolução. Disse ao José que não o podia ter mais em casa _ por certas dificuldades. Ele saiu, mas eu sabia que a Adélia lhe falava. Passaram-se meses nessa tortura. De vez em quando eu a interrogava e sempre obtinha respostas negativas. Certo dia passei pelo José na rua e ele riu. Em casa pus Adélia em confissão, e ela disse: “É mesmo, fizeste bem em pôr esse homem na rua. Andava-me tentanto e foi tão ingrato que nem se despediu da gente direito.” De outra feita, encontrei-os na esquina, conversando e afinal, em casa. Foi então que eu fiquei desatinado.

Oh! o amor! Eu ouvira o amor sexagenário, o amor doloroso, o amor lilliput desse ménage de Crianças! Todos tinham Chegado ao mesmo fim trágico, ontem criaturas dignas, hoje com as mãos vermelhas de sangue, amanhã Condenados por um juiz indiferente. Fiz um gesto. O pequeno insistiu.

_ Já que estou aqui, quero trabalhar. Nunca passei sem trabalhar. Peço a V. Sa para ver se entro como servente. Não quero estar no Cubículo Com aquela gente.

Neste momento traziam uma negra roliça, de dentes afiados, Com um sorriso alvar a iluminar-lhe a cara. Era a Herculana, a autora de um crime célebre. Matara o amante enquanto este dormia, acendera todas as velas que encontrara e começara a cantar. O amante tinha vinte e três anos.

_ E por que foi?

_ Ora, nós brigamos. Eu gostava dele. Nós brigamos. Um dia, ele me disse uma porção de nomes. Eu fiquei Calada, mas quando o vi deitado, Com o pescoço à mostra, roncando, parece que o diabo me tentou. Eu fui então, Com a faca...

Aproximei-me, e bem perto, quase murmurando as palavras:

_ Diga: era Capaz de fazer o mesmo outra Vez, de abrir o

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