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crianças, leva-as para a casa, um doloroso centro de lenocínio e Velhacaria, a extorqui-las. Presentemente tem cinco petizes, todos menores de doze anos; três meninos, Alfredo, Felipe e Narciso, e duas meninas, Gertrudes e Madalena. As criancinhas saem pela manhã, Voltam para almoçar, tornam a sair e só voltam à noite, para o interrogatório e a palmatória.

Um dos pequenos mostrou-me o ogre horrendo. Arrastava-se com uma Voz pastosa e, quando me Viu, trêmula curvou-se.

_ Pelo amor de Deus! uma esmola para os desgraçadinhos!

Os desgraçadinhos, na tarde chuvosa, pareciam transidos.

O Vento fustigava-lhes as carnes seminuas e eles, agarrados uns aos outros, na fraternidade do sofrimento, sem pai, sem mãe, sem amparo, erguiam os olhos para o céu numa angustiosa súplica.

ONDE ÀS VEZES TERMINA A
RUA

Crimes de Amor

Ao entrar no seu gabinete, severamente mobiliado de Canela escura, o capitão Meira Lima disse:

_ Meu Caro amigo, tem você ampla liberdade. Pode ver, interrogar, examinar. Há agora na detenção quatrocentos e Cinquenta e quatro detentos, dos quais trezentos e noVenta e cinco homens e cinquenta e nove mulheres. Antigamente, era maior o número. Nós Conseguimos que se não mantivessem aqui presos à disposição dos delegados sem processo. Mas, ainda assim, o exército do crime está bem representado. Há gatunos, desordeiros, incendiários, defloradores, mulheres perdidas, vítimas da sorte, criminosos por amor _ tOda uma flOra estranha e curiosa. Estude você os crimes de amor. Lembra-se de um dramalhãO dO repertório da Ismênia: Aimée, Ou o assassino por amor? Não é dO seu tempo nem do meu, mas cOmOveu a geração passada e tem contínuos exemplos nas penitenciárias.

_ E nas literaturas.

f

_ Pois vá ver esses Criminosos. O assassino pOr amor e o único delinquente que Confessa O crime.

Alguns chegam mesmo a reviver detalhes insignificantes. AO passo que os gatunos, Os incendiários e Os homicidas vulgares, mesmo tendo a cumprir sentenças longas, negam sempre o crime; essas vítimas da paixão não se cansam de contar a sua história, cada vez com maiOr número de minúcias e mais abundância de memória.

_ Pois, Vejamos as Vítimas dO amor!

O capitão mandOu chamar o chefe dOs guardas, Antônio Barros, e saímos para o pátio, onde Os presos serventes mourejavam.

_ Há uns cinco casos notáveis, informava-se O guarda. Vamos entrar na primeira galeria.

1

A galeria e um enorme corredor, ladeado de cubículos engradados. A má disposição de luz, com a claridade da frente e dos fundos e a claridade das prisões, dá a esse corredor uma perpétua atmosfera de meia sombra. Através dos muros brancos ouve-se o sussurro das conversas murmuradas. Barros aponta-me silenciosamente uma das jaulas. Aproximo-me e do fundo vejo surgir um velho preto, magro, seco, com o olhar ardente e a cabeça branca. Pergunto receoso:

_ Por que está aqui?

_ Porque matei.

Nas prisões há duas coisas revoltantes: o cinismo do que nega e o que confessa como uma afronta. Aquela frase breve tinha, porém, cunho de uma dolorosa sinceridade.

_ Eu sou do crime da Estrada Real, continuou o pobre agarrando-se aos varões de ferro. Chamo-me Salvador Firmino, tenho sessenta e três anos.

_ E matou?

_ Porque ela quis.

E de repente, como se a lembrança da cena o forçasse a se desculpar, a sua cabeça branca curvou-se, os seus olhos lampejaram:

_ Quando eu encontrei Silvéria, era casado e feliz. Abandonei a mulher, só para Viver com ela. Silvéria tinha dois filhos. Eduquei-os eu, dei-lhes o sustento, o ensino. Uma casa que consegui comprar logo passei para o seu nome, e de tudo eu me lembrava que a tornasse feliz. Silvéria tinha quarenta anos e eu gostava dela. Foi quando apareceu o outro. A mulher ficou com a cabeça Virada, já não lhe bastava o meu carinho. Saía só, para passear com ele, não se importava com o passado, não me falava. O desaforo chegou ao ponto do outro vir trazê-la até à porta de casa. As vezes, eu os via de longe e entrava no mato para os não encontrar. Que dor! Eu tinha tanto medo de acabar... Uma noite, ela saiu, esteve na festa de Nossa Senhora e Voltou acompanhada até à porta pelo outro. Eu bem que os Vira, mas fingi não saber de nada quando entrei em casa. Silvéria conversava com a vizinha e dizia: “Mas se eu já lhe disse que podia vir...” Não pude comer a sopa; fui logo deitar-me. Do quarto Via-se a sala, onde dormia o pequeno filho dela,e não demorou muito tempo que a Vizinha não colocassse na cama outro travesseiro. Eu estava olhando, à luz da lamparina. Deixei passar alguns minutos e disse: “Ó Silvéria, Vem-te deitar.” Ela não respondeu. “Silvéria, já disse que Viesses dormir!” “Já Vou.” De repente, os cães, no terreiro, começaram a ladrar. Era um alarido. Saltei da cama, agarrei o revólver. “Quem está aí?” Ela apareceu então: “Deita-te, não é nada.” “Qual! Pois se os cães estão ladrando...É alguém.” “Que Vais fazer?” “Ver”. “Não Vás, Firmino não vás, não é nada!” E agarrava-se ao meu braço. “Como não hei de ir? Se for gatuno? Talvez esteja a roubar a criação.” “Firmino, meu Velho, não vás!” Dei-lhe um empurrão, abri a tranca. Na moita, só a lua aclarava as moitas e os cães arfavam cansados. Voltei. Ela estava sentada, chorando. “Tu desconfias de mim!” “Eu? que falso!” “Tu pensavas que era o Herculano!” “Eu? Nem pensava nisso!” “Pensavas, sim! E o melhor é acabar com isso. Vou-me embora!” Ela estava à espera

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