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mal, entrega-se à minha proteção, de que depende a sua vida, com uma detestável e beata hipocrisia. Era ajudante de pedreiro. Após o desastre mandaram-no esmolar no Passeio Público. O pai é trabalhador, ganha quatro mil e quinhentos, tem oito filhos e a

mulher doente.

Ele ajuda com o dinheiro das esmolas. É um dos casos de formação de caráter, de inversão moral. Adolescente, forte, musculosa, a permanência na mendicidade deu-lhe à voz melopeias suspirosas e um recheio de votos pela sorte alheia. Não fala um segundo sem pedir a Deus que nos ajude, sem agradecer

em nome de Deus a nossa bondade.

_ Ai! Nossa Senhora, juro por Deus que todo o desejo que tenho é trabalhar. .

Simples blague. Dêem-lhe um emprego e rejeitará, inutilizado pela vida de sarjeta, de desbrio, de inconsciente sem-vergonhice a que o forçou o pai.

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Esse bando, porém, e evidentemente defeituoso; ganha dinheiro, como se estivesse empregado para sustentar a família. Há o outro, o maior, o infindável, que a polícia parece ignorar, a exploração capaz de emocionar os delegados nos dramalhões, a indústria da esmola infantil exercida por um grupo de matronas indignas e de homens criminosos, as criancinhas implumes, piolhentas e sujas, que saem para a rua às varadas, obrigadas ao sustento de casas inteiras; há a exploração lenta, que ensina os pequenos a roubar e as meninas a se prostituirem; o caftismo disfarçado, que espanca, maltrata e extorque. É um vasto tremedal a que a retórica sentimental nada adianta, cujo mal a segurança pública não quer remediar. Basta ter a simples curiosidade para mergulhar nesse caleidoscópio infinito de cenas torturantes de uma mesma ação, basta parar a uma esquina e ouVir a narração dessas tragédias vulgares e de fácil remédio.

A série de meninas é enorme, desde as cínicas de face terrosa às ingênuas e lindas.

_ Como se chama você?

_ Elisinha, sim senhor.

E parda: tem nove anos.

Embrulhada nuns farrapos, a tremer com os beicinhos roxos e as mãos no ar, muito aflita, parece que lhe vão bater. Mora na Rua Frei Caneca.

Não vai para a casa, não pode ir. A madrinha bate-lhe, tem o corpo cheio de equimoses.

_ Quando não arranjo bastante para a madrinha e as filhas, dão-me sovas!

Destes casos há muitos com diversas modalidades. Jovita, por

exemplo, pede esmola com uma bandeja dizendo que e missa pedida ou promessa feita. A mulher que a criou e a explora, a terrível megera Maria Trapo Velho, mora na Rua São Diogo e dálhe Conselhos de roubo.

_ Ela diz que, quando encontrar roupas ou outros objetos, meta no saco. Quando passo uma semana sem levar nada, põe-me de Castigo, Com os joelhos em Cima do milho e sem comer.

Rosinha mora na Rua Formosa. Sai acompanhando uma senhora que finge de Cega. A mãe é negra; ela é alva e todos ficam admirados!

Judite, Com oito anos, moradora à Rua da Lapa, andava Com o pai pelo subúrbio, tocando realejo. O pai fingia-se de Cego, e Como um Cidadão descobrisse a patifaria, é ela só quem esmola, atacando as senhoras, pedindo algum dinheiro para a mãe moribunda. Laura e Amélia, filhas da senhora Josefina, têm um irmão que aprende o ofício de carpinteiro, moram na Rua da Providência e passam o dia a arranjar dinheiro para a mamã mais o padrasto.

_ E o padrasto, que faz?

_ Dá pancada na gente quando não se anda direito.

Estela, mulatinha, vive Com uma dama que se diz sua avó, na Rua Senador Eusébio. As vezes fica até às dez horas da noite à porta da Central, esmolando. Nicota, moradora no Pedregulho,

tem treze anos e perigosa viveza de Olhar. A puberdade, a languidez dos membros rijos dão-lhe receitas grandes. É mandada pelo padrasto, um português chamado Jerônimo, que a industria. Explora a miséria nO jardim de Eros, fazendo tudo quanto a não prejudica definitivamente, à pOrta dos quartéis, pelos bairros comerciais, aO escurecer. Confessa que vai abandonar o Jerônimo

pelo sargento Gomes, a quem ama. A lista não tem fim, e o mesmo fato cOm variantes secundárias.

Se nessas crianças encontramos o abismo da perdição a tragálas, nos pequenos vemos um grande esboço de todos Os crimes.

Em quatro dias interrogamos noventa e seis garotos, estrangeiros, negros, mulatos, uma sociedade mOvediça e dolorosa. Há desde os pequenos que sustentam famílias até os gatunos precoces que se deixam roubar na vermelhinha à beira do cais, entre murrOs e cachações.

O primeiro a encontrarmos é O negrinho Félix, morador à Rua do Costa, órfãO, que vive na casa de uma família. Como as coisas estão más, sai de sacola, a esmolar e a roubar. Já esteve preso pOr apanhar várias amostras de uma loja, mas um moço da polícia, que gosta de uma das meninas da casa, soltou-O.

_ Que fazes hoje?

_ Hoje tenho que roubar um queijo. Sinhazinha diz que não apareça sem um queijo.

Armando, petiz de dez anos, diz-se italiano por causa das dúvidas. Pára no Largo da Sé e, ingenuamente, conta que a família não faz comida há três anos. E ele que arranja tudo, fora os cobres. José Vizuvi, também italiano, é filho do conhecido mendigo Vizuvi. Sai da Rua do Alcântara, onde mora, às 5 da manhã, à procura dos pães que os padeiros costumam deixar nas janelas e à porta de certas casas. Quando a janela é alta serve-se de um pau em forma de ferrão. O pai ensina-o a roubar. Dudu de Oliveira passa o dia no Mercado e nos bairros centrais. A mãe, fingindo-se de cega, esmola no Largo do Machado. Ele leva recados suspeitos e propõe-se a misteres ignóbeis.

João Silva, morador à Rua Senador Pompeu, com treze anos, também serve para esses serviços pouco asseados. A mãe, sem emprego, é espancada pelo amante que lhe arranca todo o dinheiro. Franzino, doloroso, esse pretinho na ânsia da vida sustenta um caften reles. Todos esses nomes ignorados escondem

dramas pungentes, cenas de horror, vidas perdidas.

A observação de tantos casos não me dava o tipo do explorador, não me mostrava os peralvilhos que vivem à custa das pobres crianças, receosas de me mostrar as casas onde são torturadas. Encontrei-o, porém, o tipo ideal, o drama resumo de um estado social, a tragédia soluçante que cada vez mais se alastra.

Logo no começo da Rua Uruguaiana há uma mulher de cor branca, fisionomia torva, sempre embiocada em panos pretos. Chamam-na a Cameleão, alcunha que lhe ficou do peralta do filho. Esse ente repelente tem uma estalagem, um prédio; é rica e pede esmola, provando ser viúva pobre. Quando encontra

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