Imagens da página
PDF
ePub

As mendigas alugadas são em geral raparigas com disposições lamurientas, velhas Cabulosas aproveitadas pelos agentes da falsa mendicidade, com ordenado fixo e porcentagem sobre a receita. Encontrei duas moças _ uma de Minas, outra da Bahia _ Albertina e Josefa, e um bando de velhas nesse emprego. As raparigas são uma espécie de pupilas da sra. Genoveva que mora na Gamboa. Josefa, picada de bexiga, só espera o meio de se ver fora do jugo; Albertina, tísica, tossindo e escarrando, apresenta um atestado que a dá por mãe de três filhos.

O atestado é, de resto, um dos meios de embaçamento público.

Certo caften, morador nos subúrbios, chamado Alfredo, tem por sua conta um par de raparigas _ a Jovita italiana, e a parda Maria. A Jovita foi, a princípio, criada; fugiu Com um rapaz, abandonou-o e caiu na exploração da mendicidade Com o sr. Alfredo. Maria é a história de Jovita, um pouco mais escurecida. Ambas têm atestado em bela letra, dizendo as graças que lhes vão por casa e o cadáver à espera do Caixão.

Como Jovita é bonita, os subscritores são tão numerosos que pode fazer, sem cuidado, alguns enterramentos por semana. As 7 da noite, tomam as duas o trem na Central e quando se sentem seguidas, saltam em estações diferentes, metem-se nos bondes _ tudo isso muito alegres e defendendo o sr. Alfredo com grande dedicação.

O gênero é relativamente agradável, à vista dos outros _ o das vagabundas ladras e das pitonisas ambulantes, grupo de que são figuras principais as sras. Concha e Natividad, espanholas, e a sra. Eulália _ cigana exótica. A sra. Concha, pOr exemplo, é cleptômana, e, dessa tara lhe vem a profissão _ da tara e da inépcia policial. Quando cocotte, Concha teve amantes ricos e roubava-lhes o relógio, os lenços, os alfinetes, por diversão.

Foi presa pOr um inglês sisudO, e partiu para Lisboa Onde repetiu a Cena tantas vezes que aos poucos se viu na necessidade de voltar ao Brasil como criada. Roubou de novo, foi Outra vez presa e resolveu ser cartomante andarilha, ler a buena dicha pelos bairros pobres, pelas estalagens, para roubar. É gordinha, anda arrimada a um cacete, fingindo ter úlceras nas pernas. Aproximase, pede a esmola cOmO quem pergunta se as coisas vão mal.

_ Deus a favoreça!

_ Você tem cara de ser feliz! Vamos ver a suerte del barajo.

E tira do seio um maço de cartas. Quem nestas épocas dispersivas crenças, deixará de saber da própria sorte? Mandamna entrar e ela conta histórias às famílias enquanto empalma objetos e alguns níqueis agradecidos.

Natividad e Eulália seguem O mesmo processo, mas Eulália, aduncamente cigana, lê nas mãOs deformadas e calosas dos trabalhadores, enquanto as suas apalpam os bolsos do cliente.

Do fundO desse emaranhamento de víciO, de malandragem,

gatunice, as mulheres realmente miseráveis são em muito maior número que se pensa, criaturas que rolaram por todas as infâmias e já não sentem, já não pensam, despidas da graça e do pudor. Para estas basta um pão enlameado e um níquel; basta um copo de álcool para as ver taramelar, recordando a existência passada.

Vivem nas praças, no Campo da Aclamação; dormem nos morros, nos subúrbios, passam à beira dos quiosques, na Saúde, em S. Diogo, nos grandes centros de multidões baixas, apanhando as migalhas dos pobres e olhando com avidez o café das companheiras. Eu encheria tiras de papel sem conta, só com o nome dessas desgraças a quem ninguém pergunta o nome, senão nas estações, entre cachações de soldados e a pose pantafaçuda dos inspetores; e seria um livro horrendo, aquele que contasse com a simples verdade todas as vidas anônimas desses fantásticos seres de agonia e de miséria! Andam por aí ulceradas, sujas, desgrenhadas, com as faces intumescidas e as bocas arrebentadas pelos socos, corridas a varadas dos quiosques, vaiadas pela garotada. Nas noites de chuva, sob os açoites da ventania, aconchegam-se pelos portais, metem-se pelos socavões, tiritando... Às vezes, para cúmulo de desgraça, aparecem grávidas, sem saber como, à mercê da horda de vagabundos que as viola, que as tortura, que as bate, sem lhes conceder ao menos a piedade do nojo; e os filhos morrem, desaparecem, levados na tristura do seu soluçante existir, estrangulados, talvez, nos inúmeros recantos que a milícia do

nosso duplo policiamento ignora.

Acompanhado do cínico Mazzoli, ouvi-lhes as confissões inauditas. Pela noite alta, íamos os dois para o Largo da Sé, para as beiradas da Santa Casa, e, diante de nós, esses semblantes alanhados de sofrimento, os olhos em pranto, como um bando de

espertos, desvendaram-nos os paroxismos da Vida antiga.

Eram amorosas exploradas, ardendo ainda em raiva passional, eram Vítimas do caftismo sentindo no lábio o freio de lenocínio, eram cocottes do chic, escalavradas de sífilis, na dor do luxo passado, e velhas, velhas sem pecado, que a miséria, a ingratidão e a misteriosa fatalidade desfaziam nos mais amargurados transes. Nunca os descabelados românticos imaginaram tão torvos quadros.

Já quando se lhes pergunta o nome com bondade, a surpresa estala em choro.

_ Chamo-me Zoarda. Sou cubana. Vim para o Rio com um pelotari. Ao chegar aqui, outro conquistou-me. Fui explorada por ambos. Eram bonitos, eram fortes! Adoeci; eles tomaram outra. Quando saí do hospital só pensava em matá-la!

_ A quem?

_ A ela, a outra. Fui, entretanto, presa e novamente segui para a Gamboa, onde cheguei a ser enfermeira. Quando de lá saí, roída pela moléstia, estava este trapo à espera do Zé-Maria.

_ O Zé-Maria?

_ Sim, da morte!

Zoarda vive a fingir que tem barriga-daágua.

_ Josefina Veral, sim, senhor. Vim como criada. Um homem raptou-me; vivi com ele seis anos. Entreguei-me à prostituição explorada por dois malandros. Roubavam-me, a moléstia acabou a obra... Não posso trabalhar.

E de dentro de sua negra boca saem descrições satânicas da Vida que a inutilizara.

_ Ema Rosnick, nascida em Budapeste em 1874. Fui enjeitada num corredor. Os moradores levaram-me à polícia que cuidou de mim. Aos 18 anos casei Com RosniCk, um debochado. Uma Vez atirou-me aos braços de um amigo, a quem matou depois por questões de jogo; vim para o Brasil...Oh! os exploradores. Estou neste estado.

Esta mulher de trinta anos parece ter sessenta.

E outras e outras, floristas ainda moças, velhas que tiveram lar, mulheres passionais ou vítimas do amor, Como nas prosas byronianas de 1830, como nos dramalhões do Recreio, um mundo de soluços, que, visto, ao nosso cepticismo parece falso.

Certa noite, no Largo da Sé, encontramos junto ao quiosque, cheia de latas velhas e coberta de andrajos, uma cara de velha boneca aureolada de farripas louras. A Cara sinistra falava

« AnteriorContinuar »