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As Mulheres Mendigas

A mendicidade é a exploração mais regular, mais tranquila desta cidade. Pedir, exclusivamente pedir, sem ambição aparente e sem vergonha, assim à beira da estrada da Vida, parece o mais rendoso ofício de quantos tenham aparecido; e a própria miséria, no que ela tem de doloroso e de pungente, sofre com essa exploração.

E preciso estudar a sociedade complicada e diversa dos que pedem esmola, adivinhar até onde vai a Verdade e até onde chega a malandrice, para compreender como a polícia descura o agasalho da invalidez e a toleima incauta dos que dão esmolas.

Entre os homens mendigos há irmãos da opa, agentes de depravação Viciados, profissionais de doenças falsas, mascarando um formidável cenário de dores e de aniquilamento. Só depois de um longo convívio é que se pode assistir à iniciação da maçonaria dos miseráveis, os estudos de extorsão pelo rogo, toda a tática lenta do pedido em nome de Deus que, às vezes, acaba em pancada. Os homens exploradores não tem brio. As mulheres, só quando são realmente desgraçadas é que não mentem e não fantasiam. São, entretanto, as mais incríveis.

Foi Pietro Mazzoli, um mendigo cínico, que pára sempre no Largo do Capim, quem me apontou o meio diverso da mendicidade das mulheres. Pietro é baixo, reforçado, Corado. Puxa sempre a suiça potente, Com o minúsculo Chapeuzinho posto ao lado, sobre a juba enorme e Cheia de lêndeas. É mendigo por desfastio e Comodidade. Soldado, fugiu do serviço militar Como Criado de bordo. Em Buenos Aires fez-se inculcador de Casas suspeitas, porteiro do mesmo gênero, caften, barítono de café Cantante, preso. No Rio, sendo-lhe habitual a prisão, já foi Cego, torto das pernas, aleijado de carrinho, corcunda, maneta, atacado do mal de S. Guido. E o Frégoli da miséria. Antes de se estabelecer mendigo, andou pelo Estado do Rio fazendo dançar um urso que era um Companheiro de malandragens. Essa pilhéria do urso nada autêntico valeu-lhe uma sova e três anos de prisão. Homem de tal jaez Conhece todos os truques, a falsa miséria e a verdadeira, a exploração e a dor sentida. E ele quem nos inicia.

Há mendigas burguesas, mendigas mães de família, alugadas, dirigidas por caftens, Cegas que vêem admiravelmente bem, Chaguentas lépidas, cartomantes ambulantes, vagabundas, e uma série de mulheres perdidas Cuja estrela escureceu na mais aflitiva desgraça.

Nos pontos dos bondes, pelas ruas, guiadas sempre por Crianças de faces inexpressivas, vemos tristes Criaturas Com as mãos estendidas, mastigando desejos para a nossa salvação, com a ajuda de Deus

Há a Antônia Maria, a Zulmira, a Viúva Justina, a d. Ambrosina, a excelente e anafada tia Josefa; umas magras, amparadas aos bordões, chorando humildades; outras gordas, mOvendO a mole dO corpo com tremidinhos de creme. As portas das igrejas param, indagam quem entra, a ver se a missa é de gente rica; postam-se nas escadarias, agachadas, salmodiando funerariamente, Olhando cOm rancor Os mendigos _ negros rOídOs de alcoolismo, velhos a tremer de sífilis. A lista dessas senhoras é interminável, e há entre elas, negócios à parte, uma interessante sociabilidade. Cada uma tem O seu bairro a explorar, a sua igreja, o seu ponto livre de incômOdOs imprevistos. Quando aparece alguma neófita, olham-na furiosas e martirizam-na como nas escolas aos estudantes calouros.

Têm, naturalmente, uma vida regrada a cronômetrO suíço, criaturas tão convencidas dO seu Ofício. Saem de casa às 6 da manhã, ouvem missa devotamente porque acreditam em Deus e usam ao peito medalhinhas de santos.

Depois, postam-se à porta até que a última missa tenha dado a receita suficiente às várias dependências do templo, vão almoçar e começam a peregrinação pelos bondes, de porta em porta, até à hora de jantar. Uma, a Isabel Ferreira, cabocla esguia e má, pede

a noite e confessa que isso dá uma nota mais lúgubre, mais emocionante aO pedido.

Ao passar pOr essa gente sentem todos o fraco egoísmo da bondade e, cinco Ou seis dias depois de as conversar, percebe-se que esmolar é apenas uma profissão menos fatigante que coser Ou lavar _ e sem responsabilidades, na sombra, na pândega. A maior parte dessas senhoras não tem moléstia alguma; sustenta a casa arrumadinha, canja aos domingos, fatiotas novas para os grandes dias. São, ou dizem-se, quase sempre viúvas.

Algumas, embrulhadas em xales pretos, acompanhadas de dois ou três petizes, as mais das vezes alugados _ como uma certa mulher cor de cera, chamada Rosa _ percorrem os estabelecimentos comerciais, ou lugares de agitação; sobem às redações dos jornais, forçando a esmola, agarrando, implorando. A d. Rosa, para dizer o seu nome e a inaudita felicidade da vida numa rede de mentiras, arrancou-me cinco mil réis, com precipitação, arte e destreza tais que, quando dei por mim, já ia longe com os petizes e a nota.

Não há uma só cuja coleta diária seja menor de dez mil réis, e, cada qual pede a seu modo, invadindo até as sacristias das igrejas. A Francisca Soares, da igreja de S. Francisco, envolta em uma mantilha de velho merinó, começa sempre louvando os irmãos benfeitores pintados pelo sr. Petit.

Que retratos! Estão tal qual, certinhos! Depois, pergunta-nos se não temos coupons de volta dos bondes, arrisca-se a implorar o tostão em troca do coupon e, quando vê a moeda, fala mais do sr. Petit e acha pouco. Outras, dotadas de grande vocação dramática, sussurram, com a face decomposta, a angústia de um irmão morto em casa, sem dinheiro para o caixão. O resto, sem inventiva, macaqueia o multiformismo da invalidez, rezando.

A esmola, apesar da crise econômica que os jornais proclamam, subiu. Não há quem dê moeda de cobre a um mendigo sem o temor de desgostá-lo ou de levar uma descompostura cheia de pragas, que nessas bocas repuxadas causam uma dolorosa impressão de dor e de confrangimento.

Logo de manhã, quando nas torres os sinos tangem, a tropa sobe para a igreja.

_ Bom dia, d. Guilhermina.
_ Bom dia, d. Antônia. Como Vai dos seus incômodos?
_ O reumatismo não me deixa. E desta laje fria.

_ Que se há de fazer? É a Vontade de Deus. Então, hoje, missas boas?

_ Li no jornal: às nove e meia a do general... Mas, não contemos. Os ricaços estão cada Vez mais sovinas.

Aconchegam-se, tomam posição e, pouco depois, os níqueis começam a cair e as vozes de dentro dos xales a sussurrar:

_ Deus Vos acompanhe! Deus lhe pague! Deus lhe dê um bom fim!

Há até certos lugares rendosos que são Vendidos como as cadeiras de engraxate e os fauteuils de teatro.

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