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_ Espero a hora do bote para a ilha. Sou carvoeiro, sim senhor... Ai! minha mãe! Vão levar-me preso!

Subitamente, porém, apalpou as algibeiras, olhou-nos ansioso. Tinha sido roubado! Houve um rebuliço. Como por encanto, homens, havia ainda minutos, a dormir profundamente, acordavam-se. O sr. delegado, alteando a voz, deu ordem para não deixar sair ninguém sem ser revistado. O encarregado, com perdão do sr. delegado e das outras senhorias, descompunha o pequeno.

_ Trouxe dinheiro, maricas? Já não lhe tenho dito que entregue? E lá possível ter confiança nesta súcia. E a minha casa agora, e eu? Besta de uma figa, que não sei onde estou...

Os agentes faziam levantar a canalha, arreliada com o incidente e na luz vaga os perfis patibulares emergiam com gestos cínicos de espreguiçamento.

Tanto o bacharel como o adido mostravam na face um leve susto. O delegado contemplava-os.

_ Que lhes dizia eu? Uma sensação, meus caros, admirável. Subamos ao último andar!

Havia com efeito mais um andar, mas quase não se podia chegar, estando a escada cheia de corpos, gente enfiada em trapos, se estirava nos degraus, gente que se agarrava aos balaústres do corrimão _ mulheres receosas da promiscuidade , de saias enrodilhadas. Os agentes abriam caminho, acordando a canalha com a ponta dos cacetes. Eu tapava o nariz. A atmosfera sufocava. Mais um pavimento e arrebentaríamos. Parecia que todas as respirações subiam, envenenando as escada e o cheiro, o fedor, um fedor fulminante, impregnaVa-se nas nossas próprias mãos, desprendia-se das paredes, do assoalho carcomido, do teto, dos corpos sem limpeza. Em cima, então, era a Vertigem. A sala estava cheia. Já não havia divisões, tabiques, não se podia andar sem esmagar um corpo vivo. A metade daquele gado humano trabalhava; rebentava nas descargas dos Vapores, enchendo paióis de carvão, carregando fardos. Mais uma hora e acordaria para esperar no cais os batelões que a levassem ao cepo do labor, em que empedra o cérebro e rebenta os músculos.

Grande parte desses pobres entes fora atirada ali, no esconderijo daquele coVil, pela falta de fortuna. Para se livrar da polícia, dormiam sem ar, sufocados, na mais repugnante promiscuidade. E eu, o adido, o bacharel, o delegado amável estávamos a gozar dessa gente o doloroso espetáculo!

_ Não se emocione, disse o delegado. Há por aqui gatunos, assassinos, e coisas ainda mais nojentas.

Desci. Doíam-me as têmporas. Era impossível o cheiro de todo aquele entulho humano. O adido precipitou-se também e os outros o seguiram. Embaixo, a Vistoria aos fregueses não dera resultado. O encarregado ainda gritava e o cabo estava nervoso, já tendo dado alguns murros. O dr. delegado teve uma última ideia _ a Visão de uma cena ainda mais cruel.

_ Vamos Ver os fundos!

Foi aí então que vimos o sofrer inconsciente e o último grau da miséria. O hospedeiro torpe dizia que por ali dormiam alguns de favor, mas pelo Corredor estreito, em derredor da sentina, no trecho do quintal, Cheio de trapos e de lama, nas lajes, os mendigos, faces escaveiradas e sujas, acordavam num Clamor erguendo as mãos para o ar. E de tal forma a treva se ligava a esses espectros da vida que o quadro parecia formar um todo homogêneo e irreal.

_ Tudo grátis aos desgraçadinhos, sibilava o homem musculoso.

Curvei-me, perto da latrina. Era uma velha embiocada num capuz preto.

_ Quanto pagou v., minha velha?

_ O que tinha, filho, o que tinha, dois tostões...

Dei-lhe qualquer coisa, e mais íntima, esticando o pescoço, ela indagou, trêmula:

_ Por que será tudo isso? Vão levar-nos presos?

Mas já o delegado saíra com os seus convidados. A porta o encarregado esperava. Saí. A escuridão afogava Os prédios, encapuchava Os combustores, alongava a rua. Não se sabia onde acabara O pesadelo, Onde começara a realidade.

_ Basta, dizia O adido, basta. Já tenho uma dose suficiente. _ Também é tudo a mesma Coisa. E ver uma, é ver todas. _ E quem diria? concluiu o bacharel, até então mudo.

Neste momento ouviu-se O grito de pega! Um garOtO corria. O cabo precipitou-se.

Já Outros dois soldados vinham em disparada. Era a caçada aos garotos, a “canoa”. A “canoa” vinha perto. Tinham pegado uns vinte vagabundos, e pela calçada, presos, seguidos de soldados, via-se, como uma serpente macabra, desenrolar-se a série de miseráveis trêmulos de pavor.

_ Canalhas! bradou O dr. delegado. E ainda se queixam que os mande prender para dOrmir na estação!

_ Nós devíamos ter asilos, instruiu O adido.

f

_ É verdade, os asilos, a higiene, a limpeza. TudO isso e bonito. HavemOs de ter. POr enquanto nosso Senhor, lá em cima,

que olhe por eles!

As suas mãos, maquinalmente esticaram-se, e os nossos olhos acompanhando aquele gesto elegante de ceticismo mundano, deram no céu, recamado de ouro. Todas as estrelas palpitavam, por cima da casaria estendia-se uma poeira de ouro. Naquela chaga incurável, chaga lamentável da cidade, a luz gotejava do infinito como um bálsamo.

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