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rede de becos, víamos outras lanternas em forma de foice, alumiandO portas equívOcas. Havia casas de um pavimento só, de dois, de três; negras, fechadas, hermeticamente fechadas, pegadas uma à Outra, fronteiras, confundindo a luz das lanternas e a sombra dos balcões. Os nossos passos ressOavam num desencontro nos lajedOs quebrados. A rua, mal iluminada, tinha candeeiros quebrados, sem a capa Auer, de modo que a brancura de uns focos envermelhecia mais a chama pisca dos outros. Os prédios antigos pareciam ampararem-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas, arrebentadas algumas. De repente porta

abria, tragando, num sOm cavo, algum retardatário.

Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobrian cafajestes de bombacha branca, gingando, e constantemente O monótono apito do guarda noturno trilava, corria como um arrepio na artéria dO susto para logo outro responder mais longe e mais longe ainda OutrO ecOar O seu áspero trilO. No altO, O céu era misericordiosamente estrelado e uma doce tranquilidade parecia escorrer do infinito.

_ Há muitOs desses covis espalhados pela cidade? indagou advogado, abotoando o mac-farlane.

_ Em todas as zonas, meu caro.

_ Em cinco noites, visitando-Os depressa, informou o agente, V. Sa não dá cabo deles. É por aqui, pela Gamboa, nas ruas centrais, nos bairros pobres. Só na Cidade Nova, que quantidade! Isso não contando as casas particulares, em que moram vinte e mais pessoas, e não querendo falar das hOspedarias só de gatunOs,

os “zungas”.

_ “Zungas”? fez o adido de legação, curioso.

_ As hospedarias baratas têm esse nome...Dorme-se até por cem réis. Saiba V. Sa que a vídinha dava para uma história.

Mas debaixo de uma das foices de luz, o delegado parara. Estacamos também.

O soldado bateu à porta com a mão espalmada. Houve um longo silêncio. O soldado tornou a bater. De dentro então uma voz sonolenta indagou:

_ Quem é?

_ Abra! É a polícia! Abra!

O silêncio continuou. Nervoso, o delegado atirou a bengala ã porta.

_ Abra já! É o dr. delegado! Abra já!

A porta abriu-se. Barafustamos na meia-luz de um corredor com areia no soalho. O homem que viera abrir, corpulento, de camisa de meia, esfregou os olhos, deu força ao bico de gás, encostou-se à mesa forrada de jornais, onde se alinhavam castiçais.

_ É o proprietário? indagou o delegado.

_ Saiba V. Sa que não. Sou o encarregado.

_ Muita gente?

_ Não há mais lugares.

_ Deixe Ver o livro.

O livro é uma formalidade cômica. A autoridade virou-lhe as páginas, rápido, enquanto os secretas descansavam as bengalas. O mau cheiro era intenso.

_ Mostre-nos isso! fez a autoridade, minutos depois.

_ Não há acusação contra a casa, há sr. doutor?

_ Não sei, ande.

O encarregado, trêmulo, seguiu à frente, erguendo o castiçal. Abriu uma porta de ferro, fechou-a de novo, após a nossa

passagem. E começamos a ver o rés-do-Chão, salas Com Camas enfileiradas Como nos quartéis, tarimbas Com lençóis encardidos, em que dormiam de beiço aberto, babando, marinheiros, soldados, trabalhadores de face barbuda. Uns Cobriam-se até o pescoço. Outros espapaçavam-se completamente nus.

A mando da autoridade superior, os agentes Chegavam a vela bem perto das Caras, passavam a luz por baixo das camas, sacudiam os homens do pesado dormir. Não havia surpresa. Os pobres entes acordavam e respondiam, quase a roncar outra vez, a razão por que estavam ali, lamentavelmente. O bacharel estava varado, o adido tinha um ar desprendido. Não tivesse ele visitado a miséria de Londres e principalmente a de Paris! O delegado, entretanto, gozava aquele espetáculo.

_ Subamos! murmurou.

Trepamos todos por uma escada íngreme. O mau Cheiro aumentava. Parecia que o ar rareava, e, parando um instante, ouvimos a respiração de todo aquele mundo Como o afastado resfolegar de uma grande máquina. Era a seção dos quartos reservados e a sala das esteiras. Os quartos estreitos, asfixiantes, Com camas largas antigas e lençóis por onde corriam percevejos. A respiração tornava-se difícil.

Quando as Camas rangiam muito e custavam a abrir, o agente mais forte empurrava a porta, e, à luz da vela, encontrávamos quatro e Cinco Criaturas, emborcadas, suando, de língua de fora; homens furiosos, Cobrindo Com o lençol a nudez, mulheres tapando o rosto, marinheiros “que haviam perdido o bote”, um

mundo vário e sombrio, gargulejando desculpas, com a garganta seca. Alguns desses quartos, as dormidas de luxO, tinham entrada pela sala das esteiras, em que se dorme por Oitocentos réis, e essas quatro paredes impressionavam como um pesadelo.

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Completamente nua, a sala podia conter trinta pessoas, a vontade, e tinha pelo menos oitenta nas velhas esteiras atiradas ao soalho.

Os fregueses dormiam todos _ uns de barriga para O ar, Outros de costas, com o lábio nO chão negro, outros de lado, recurvados como arcos de pipa. Estavam alguns vestidos. A maioria inteiramente nua, fizera dos andrajos travesseiros. Erguendo a vela, O encarregado explicava que ali O pessoal estava muito bem, e nO palor em halo da luz que ele erguia, eu Via pés disformes, mãos de dedos recurVOs, troncos suarentos, cabeças numa estranha lassidão _ galeria trágica de Cabeças embrutecidas, congestas, bufando de boca aberta... De vez em quando um braço erguia-se nO espaço, tombava; faces, em que mais de perto O raio de luz batia, tinham tremores súbitos _ e todos roncavam, afOgadOs em sOnO.

Um dos agentes sacudiu um rapazola.

_ Hein? Já quatro horas? fez O rapaz acordando.

_ Que faz aqui?

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