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pobres homens encobreados, Com olhos injetados, esfalfavam-se, e mestre Correia, dançarinando o seu passinho:

_ Vamos gente! Eh! nada de perder tempo. V. Sa não imagina. Ninguém os prende e a ilha está cheia. Vida boa!

Foram assim até a tarde, parando minutos para logo continuar. Quando escureceu de todo, acenderam-se as Candeias e a Cena deu no macabro.

Do alto, o céu Coruscava, incrustado de estrelas, um vento glacial passava, fogo-fatuando a Chama tênue das candeias e, na sombra, sombras vagas, de olhar incendido, raspavam o ferro, arrancando da alma gemidos de esforço. Como se estivesse junto do cabo e um batelão largasse saltei nele Com um punhado de homens.

Íamos a um vapor que partia de madrugada. No mar, a treva mais intensa envolvia o steamer, um transporte inglês com a Carga especial do minério. O comandante fora ao Casino;alguns boys pouco limpos pendiam da murada Com um Cozinheiro Chinês, de óculos. Uma luz mortiça iluminava o convés. Tudo parecia dormir. O batelão, porém, atracava, fincavam-se as candeias; quatro homens ficavam de um lado, quatro de outro, dirigidos um preto que Corria pelas bordas do barco, de tamancos, dando gritos guturais. Os homens nus, suando apesar do vento, começavam a encher enormes tinas de bronze que o braço de ferro levantava num barulho de trovoada, despejava, deixava cair outra vez.

Entre a subida e a descida da tina fatal, eu Os Ouvia:

_ O minério! É o mais pesado de todos os trabalhos. Cada pedra pesa quilos. Depois de se lidar algum tempo COm isso, sentem-se Os pés e as mãos frios; e O sangue, quando a gente se corta, aparece amarelo... E a morte.

_ De que nacionalidade são vocês?

_ Portugueses... Na ilha há poucos espanhóis e homens de cor. Somos nós Os fortes.

O fraco, deviam dizer; o fraco dessa lenta agonia de rapazes, de velhos, de pais de famílias numerosas.

Para os contentar, perguntei:

_ POr que não pedem a diminuição das horas de trabalho?

As pás caíram bruscas. Alguns não compreendiam, Outros tinham um risinho de descrença:

_ Para que, se quase todos se sujeitam?

Mas, um homem de barbas ruivas, tisnado e velho, trepOu pelo

monte de pedras e estendeu as mãos:

_ Há de chegar o dia, o grande dia!

E rebentou como um doido, aos soluços, diante dos companheiros atônitos.

Sono Calmo

Os delegados de polícia são de vez em quando uns homens amáveis. Esses cavalheiros chegam mesmo, ao cabo de certo tempo, a conhecer um pouco da sua profissão e um pouco do trágico horror que a miséria tece na sombra da noite por essa misteriosa cidade. Um delegado, outro dia, conversando dos aspectos sórdidos do Rio, teve a amabilidade de dizer:

_ Quer vir comigo Visitar esses círculos infernais?

Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de Visitar a miséria, ou se realmente, como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de uns tantos círculos de pavor, que fossem outros tantos ensinamentos. Lembrei-me que Oscar Wilde também Visitara as hospedarias de má fama e que Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingênuos como tendo acompanhado os grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava.

Era tudo quanto há de mais literário e de mais batido. Nas peças francesas há dez anos já aparece o jornalista que Conduz a gente Chique aos lugares macabros; em Paris os repórteres do Journal andam acompanhados de um apache autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era quase uma lei. Aceitei.

A hora da noite quando cheguei à delegacia, a autoridade ordenara uma Caça aos pivettes, pobres garotos sem teto, e preparava-se para a excursão com dois amigos, um bacharel e um adido de legação, tagarela e ingênuo.

O baCharel estava ComoVido. O adido assegurava que a miséria só na Europa _ porque a miséria é proporcional à civilização. Ambos de casaca davam ao reles interior do posto um aspecto estranho. O delegado sorria, preparando com o interesse de um maítre-hôtel o cardápio das nossas sensações.

Afinal ergueu a bengala.

_ Em marcha!

Descemos todos, acompanhados de um Cabo de policia e de dois agentes secretos _ um dos quais zanaga, com o rosto grosso de Calabrês. É perigoso entrar só nos covis horrendos, nos trágicos asilos da miséria. Íamos caminhando pela Rua da Misericórdia, hesitantes ainda diante das lanternas Com vidros vermelhos. As esquinas, grupos de vagabundos e desordeiros desapareciam ao nosso apontar e, afundando o olhar pelos becos estreitos em que a rua parece vazar a sua imundície, por aquela

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