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as refeições, e ganha-se cinco mil réis. Há, além disso, o desconto da comida, do barracão onde dormem, mil e quinhentos; de modo que o ordenado da totalidade é de oito mil réis, Os homens gananciosos aproveitam então o serviço da noite, que é pago até de manhã por três mil e quinhentos e até meia-noite pela metade disso, tendo naturalmente, o desconto do pão, da carne e do café servido durante o labor,

E uma espécie de gente essa que serve às descargas do carvão e do minério e povoa as ilhas industriais de baía, seres embrutecidos, apanhados a dedo, incapazes de ter ideias. São quase todos portugueses e espanhóis que chegam da aldeia, ingênuos. Alguns saltam da proa do navio para o saveiro do trabalho tremendo, outros aparecem pela Marítima sem saber o que fazer e são arrebanhados pelos agentes. Só têm um instinto: juntar dinheiro, a ambição Voraz que os arrebenta de encontro às pedras inutilmente. Uma vez apanhados pelo mecanismo de aços, ferros e carne humana, uma Vez utensílio apropriado ao andamento da máquina, tornam-se autômatos com a teimosia de objetos movidos a Vapor. Não têm nervos, têm molas; não têm cérebros, têm músculos hipertrofiados. O superintende do serviço berra, de Vez em quando:

_ Isto é para quem quer! Tudo aqui é livre! As coisas estão muito ruins, sujeitemo-nos. Quem não quiser é livre!

Eles vieram de uma vida de geórgicas paupérrimas. Têm a saudade das Vinhas, dos pratos suaves, o pavor de voltar pobres e, o que é mais, ignoram absolutamente a cidade, o Rio; limitam o Brasil às ilhas do trabalho, quando muito aos recantos primitivos de Niterói. Há homens que, anos depois de desembarcar, nunca pisaram no Rio e outros que, quase uma existência na ilha, voltaram para a terra com algum dinheiro e a Certeza da morte.

Vivem quase nus. No máximo, uma Calça em frangalhos e camisa de meia. Os seus conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro; o dinheiro que a pá levanta para o bem-estar dos Capitalistas poderosos; o dinheiro, que os recurva em esforços desesperados, lavados de suor, para que os patrões tenham Carros e bem-estar. Dias inteiros de bote, estudando a engrenagem dessa vida esfalfante, saltando nos paióis ardentes navios e nas ilhas inúmeras, esses pobres entes fizeram-me pensar num pesadelo de Wells, a realidade da História dos Tempos Futuros, o pobre a trabalhar para os sindicatos, máquina incapaz de poder viver de outro modo, aproveitada e esgotada. Quando um deles é despedido, Com a lenta preparação das palavras sórdidas dos feitores, sente um tão grande vácuo, vê-se de tal forma só, que vai

rogar outra vez para que o admitam.

A proporção que eu os interrogava e o sol acendia labaredas por toda a ilha, a minha sentimentalidade ia fenecendo. Parte dos trabalhadores atirou-se à pedreira, rebentando as pedras. As marretas Caíam descompassadamente em retintins metálicos nos blocos enormes. Os outros perdiam-se nas rumas de manganês, agarrando os pedregulhos pesados Com as mãos. As pás raspavam o chão, o piquiri Caía pesadamente nos vagonetes, outros puxavam-nos até a beira d”água, onde as tinas de bronze os

esvaziavam nos saveiros.

Durante horas, esse trabalho continuou com uma regularidade alucinante. Não se distinguiam bem os seres das pedras do manganês: o raspar das pás replicava ao bater das marretas, e ninguém conversava, ninguém falava! A Certa hora do dia Veio a comida. Atiraram-se aos pratos de folha, onde, em água quente, boiavam Vagas batatas e Vagos pedaços de Carne, e um momento só se ouviu o sôfregO sorver e O mastigar esfomeado.

Acerquei-me de um rapaz.

_ O teu nome?

_ O meu nome para quê? Não digo a ninguém.

Era a desconfiança incutida pelo gerente, que passeava ao ladO, abrindO a chaga do lábio num sorriso sórdido.

_ Que tal achas a sopa?

_ Bem boa. Cá uma pessoa come. O corpo está acostumado, tem três pães por dia e três vezes pOr semana bacalhau.

Engasgou-se com um Osso. Meteu a mão na goela e eu vi que

essa negra mão rebentava em sangue, rachava, porejando um líquido amarelado.

_ Estás ferido?

_ E dO trabalho. As mãos racham. Eu estou só há três meses.

Ainda não acostumei.

_ Vais ficar rico?

Os seus olhos brilhavam de ódio, um ódio de escravo e de animal sovado.

_ Até já nem chegam os baús para guardar o ouro. Depois, numa franqueza: ganha-se uma miséria. O trabalho faz-se, o mestre diz que não há...Mas, o dinheiro mal chega, homem, vaise todo no vinho que se manda buscar.

Era horrendo. Fui para outro e ofereci-lhe uma moeda de prata.

_ Isso é para mim?

_ E, mas se falares a verdade.

_ Ai! que falo, meu senhor...

Tinha um olhar verde, perturbado, um olhar de vício secreto.

_ Há quanto tempo aqui?

_ Vai para dois anos.

_ E a cidade não conheces?

_ Nunca lá fui, que a perdição anda pelos ares..

Este também se queixa da falta de dinheiro porque manda buscar sempre outro almoço. Quanto ao trabalho, estão convencidos que neste país não há melhor. Vieram para ganhar dinheiro, é preciso ou morrer ou fazer fortuna. Enquanto falavam, olhavam de soslaio para o Correia e o Correia torcia o cigarro, à espreita, arrastando os sacos no pó carbonífero.

_ Deixe que vá tratar do meu serviço, segredavam eles quando o feitor se aproximava. Ai! que não me adianta nada estar a contar-lhe a minha vida.

O trabalho recomeçou. O Correia, cozido ao sol, bamboleava a perna, feliz. Como a Vida é banal! Esse Correia é um tipo que existe desde que na sociedade organizada há o intermediário entre o patrão e o servo, Existirá eternamente, vivendo de migalhas de autoridade contra a Vida e independência dos companheiros de classe.

As 2 horas da tarde, nessa ilha negra, onde se armazenam o carvão, o manganês e a pedra, o sol queimava. Vinha do mar, como infestado de luz, um sopro de brasa; ao longe, nas outras ilhas, o trabalho curvava centenas de corpos, a pele ardia, os

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