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aplaudem Sarah Bernhardt como um prodígio. Os moradores da Saúde amam enternecidamente o Dias Braga. As meninas das Laranjeiras valsam ao som das valsas de Strauss e de Berger, que lembram os cassinos da Riviera e o esplendor dos kursaals. As meninas dos bailes de Catumbi só conhecem as novidades do senhor Aurélio Cavalcante. As conversas variam, o amor varia, os ideais são inteiramente outros, e até o namoro, essa encantadora primeira fase do eclipse do casamento, essa meia ação da simpatia que se funde em desejo, é abolutamente diverso. Em Botafogo, à sombra das árvores do parque ou no grande portão, Julieta espera Romeu, elegante e solitária; em Haddock Lobo, Julieta garruleia em bandos pela calçada; e nas casas humildes da Cidade Nova, Julieta, que trabalhou todo o dia pensando nessa hora fugace, pende à janela o seu busto formoso...

Oh! sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos. Um cidadão que tenha passado metade da existência na Rua do Pau Ferro não se habitua jamais à Rua Marquês de Abrantes! Os intelectuais sentem esse tremendo efeito do ambiente, menos violentamente, mas sentem. Eu conheci um elegante barão da monarquia, diplomata em perpétua disponibilidade, que a necessidade forçara a aceitar de certo proprietário o quarto de um cortiço da Rua Bom Jardim. O pobre homem, com as suas poses à Brummell, sempre de monóculo entalado, era o escândalo da rua. Por mais que saudasse as damas e cumprimentasse os homens, nunca ninguém se lembrava de o tratar senão com desconfiança assustada. O barão sentia-se desesperado e resumira a vida num gozo único: sempre que podia, tomava o bonde de Botafogo, acendia um charuto, e ia por ali altivo, airoso, com a velha redingote abotoada, a “caramela” de cristal cintilante... Estava no seu bairro. Até parece, dizia ele, que as pedras me conhecem!

As pedras! As pedras são a couraça da rua, a resistência que elas apresentam ao novo transeunte. Refleti que nunca pisastes pela primeira vez uma rua de arrabalde sem que o vosso passo fosse hesitante como que, inconscientemente, se habituando ao terreno; refleti nessas coisas sutis que a vida cria, e haveis de compreender então a razão por que os humildes limitam todo o seu mundo à rua onde moram, e por que certos tipos, os tipos populares, só o são realmente em determinados quarteirões.

As ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus habitantes, que há até ruas em conflito com outras. Os malandros e os garotos de uma olham para os de outra como para inimigos. Em 1805, há um século, era assim: os capoeiras da Praia não podiam passar por Santa Luzia. No tempo das eleições mais à navalha que à pena, o Largo do Machadinho e a Rua Pedro Américo eram inimigos irreconciliáveis. Atualmente a sugestão é tal que eles se intitulam povo. Há o povo da Rua do Senado, o povo da Travessa do mesmo nome, o povo de Catumbi. Haveis de ouvir, à noite, um grupo de pequenos valentes armados de vara:

_ Vamos embora! O povo da Travessa está conosco.

E a Rua do Senado que, aliada ã Travessa, Vai sovar a Rua Frei Caneca...

Como outrora os homens, mais ou menos notáveis, tomavam o nome da cidade onde tinham nascido _ Tales de Mileto, Luciano de Samosata, Epicarmo de Alexandria _ os chefes da capadoçagem juntam hoje ao nome de batismo o nome da sua rua. Há o José dO Senado, O Juca da Harmonia, O Lindinho do Castelo, e ultimamente, nOs fatos do crime, tornaram-se célebres dois homens, Carlito e CardOsinhO, só temidos em toda a cidade, cheia de CardOsinhOs e de Carlitos, porque eram o Carlito e O CardosinhO da Saúde. Direis que é uma observação puramente local? NãO, cem vezes nãO! Em Paris, a Ville-Lumière, os bandos de assassinos tomam frequentemente o nome da rua onde se organizaram; em Londres há ruas dos bairros trágicos cOm esse predomínio, e na própria história de BizânciO haveis de encontrar ruas tão guerreiras que os seus habitantes as juntavam ao nOme como um distintivo.

E assim os tipos populares.

Tive o prazer de conhecer dOis desses tipos, em que mais vivamente se exteriorizava a influência psicológica da rua: O Pai da Criança e a Perereca.

O Pai da Criança estava deslocado, na decadência. Esse ser repugnante nascera como uma depravação da Rua do Ouvidor. Quando O vi dOente, nas tascas da Rua Frei Caneca, como já não estava na sua rua, não era mais notável. Os garotos já não riam dele, ninguém o seguia, e o nojento sujeito conversava nas bodegas, cOmO qualquer mortal, da gatunice dos governos. Só fui descobrir a sua celebridade quando O vi em plena Ouvidor, cheiO de fitas, vaiado, cuspindO insolências, inconcebível de descaro e de náusea. A Perereca, aO contrário. Na Rua do Ouvidor seria apenas uma preta velha. Na Rua Frei Caneca era o regalo, o delírio, a extravagância. Os malandrins corriam-lhe aO encalçO atirando-lhe pedras, os negociantes chegavam às portas, todas as janelas iluminavam-se de gargalhadas. E por quê? Porque esses tipos são o riso das ruas e assim como não há duas pessoas que riam do mesmo modo não há duas ruas cujo riso seja o mesmo.

Se a rua é para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, é claro que a preocupação maior, a associada a todas as outras ideias do ser das cidades, é a rua. Nós pensamos sempre na rua. Desde os mais tenros anos ela resume para o homem todos os ideais, os mais confusos, os mais antagônicos, os mais estranhos, desde a noção de liberdade e de difamação _ ideias gerais _ até a aspiração de dinheiro, de alegria e de amor, ideias particulares. Instintivamente, quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para a rua! Ainda não fala e já a assustam: se você for para a rua encontra o bicho! Se você sair apanha palmadas! Qual! Não há nada! É pilhar um portão aberto que o petiz não se lembra mais de bichos nem de pancadas!

Sair só é a única preocupação das crianças até uma certa idade. Depois continuar a sair só. E quando já para nós esse prazer se usou, a rua é a nossa própria existência. Nela se fazem negócios, nela se fala mal do próximo, nela mudam as ideias e as convicções, nela surgem as dores e os desgostos, nela sente o homem a maior emoção.

Quando se encontra o amor

Na rua, sem o saber...

_ Ponho-o no olho da rua! brada o pai ao filho no auge da fúria.

Aí está a rua como expressão da maior calamidade. _ Você está em casa, venha para a rua se é gente!

Aí temos a rua indicando sítio livre para a valentia a substituir o campo de torneio medieval.

_ É mais deslavado que as pedras da rua!

Frase em que se exprime uma sem-vergonhice inconcebível.

_ É mais velho que uma rua!
Conceito talvez errado porque há ruas que morrem moças.

As vezes até a rua é a arma que fere e serve de elogio conforme a opinião que dela se tem.

_ Ah! minha amiga! Meu filho é muito comportado. Já vai à rua sozinho...

_ Ah! meninas, o filho de d. Alice está perdido! Pois se até anda sozinho na rua!

E a rua, impassível, é o mistério, o escândalo, o terror...

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