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_E.

Entre Os botes, dois saveiros enormes, rebocados por uma lancha, esperavam. Metade dos trabalhadores, aos pulos, bruscamente, saltou para os fardos. Saltei também. AcOstumadOs, indiferentes à travessia, eles sentaram-se calados, a fumar. Um vento frio cortava a baía. Todo um mundo de embarcações movia-se, cOalhava o mar, riscava a superfície das Ondas; lanchas oficiais em disparada, com a bandeira ao vento; botes, chatas, saveiros, rebocadores. Passamos perto de uma chata parada e inteiramente coberta de OleadOs. Um homem, no altO, estirou O braço, saudando.

_ Quem é aquele?

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_ E o José. E chateiro-vigia. Passou tOdO O dia ali para guardar a mercadoria dos patrões. Os ladrões são muitos. Então, fica um responsável pOr tudo, tOda a noite, sem dormir, e ganha seis mil réis. As vezes, os ladrões atacam Os vigias acordados e O homem, só, tem que se defender a revólver.

CiVilizado, tiVe este comentário frio:

_ Deve estar com sono, O José.

_ Qual! Esse é dos que dobra dias e dias. Com mulher e Oito filhos precisa trabalhar. Ah! meu senhor, há homens, por este mar afora cujos filhos de seis meses ainda os não conhecem. Saem de madrugada de casa. O José está à espera que a alfândega tire o termo da carga, que não é estrangeira.

Outras chatas perdiam-se paradas na claridade do sol. Nós passávamos entre as lanchas. Ao longe, bandos de gaivotas riscavam o azul do céu e o Cais dos Mineiros já se perdia distante da névoa vaga. Mas nós avistávamos um outro cais com um armazém ao fundo. A beira desse cais, saveiros enormes esperavam mercadorias; e, em cima, formando um círculo ininterrupto, homens de braços nus saíam a correr de dentro da casa, atiravam o saco no saveiro, davam a volta à disparada, tornavam a sair a galope com outro saco, sem cessar, contínuos como a correia de uma grande máquina. Eram sessenta, oitenta, cem, talvez duzentos. Não os podia contar. A cara escorrendo suor. Os pobres surgiam do armazém como flechas, como flechas voltavam. Um clamor subia aos céus apregoando o serviço:

_ Um, dois, três, vinte e sete; cinco, vinte, dez, trinta!

E a ronda continuava diabólica.

_ Aquela gente não cansa?

_ Qual! trabalham assim horas a fio. Cada saco daqueles tem sessenta quilos e para transportá-lo ao saveiro pagam 60 réis. Alguns pagam menos _ dão só 30 réis, mas, assim mesmo, há quem tire dezesseis mil réis por dia.

O trabalho da estiva é complexo, variado; há a estiva da aguardente, do bacalhau, dos cereais, do algodão; cada uma tem os seus servidores, e homens há que só servem a certas e determinadas estivas, sendo por isso apontados.

_ É muito, fiz.

_ Passam dias, porém, sem ter trabalho e imagine quantas corridas são necessárias para ganhar a quantia fabulosa.

A lancha fizera-se ao largo. Caminhávamos para o poço onde o navio que devia sair naquela noite fundeava, todo de branco. Era o começo do dia. A bordo ficou um terno de homens, e eu com eles. O terno divide-se assim: um no guincho, quatro na embarcação, oito no porão e quatro no convés. Isso quando a carga é seca. Carregava café o vapor.

Logo que o saveiro atracou, eles treparam pelas escadas, rápidos; oito homens desapareceram na face aberta do porão, despiram-se, enquanto os outros rodeavam o guincho e as correntes de ferro começavam a ir e vir do porão para o saveiro, do saveiro para o porão, carregadas de sacas de café. Era regular, matemático, a oscilação de um lento e formidável relógio.

Aqueles seres ligavam-se aos guinchos; eram parte da máquina; agiam inconscientemente. Quinze minutos depois de iniciado o trabalho, suavam arrancando as camisas. Só os negros trabalhavam de tamancos. E não falavam, não tinham palavras inúteis. Quando a ruma estava feita, erguiam a cabeça e esperavam a nova carga. Que fazer? Aquilo tinha que ser até às 5 da tarde!

Desci ao porão. Uma atmosfera de caldeira sufocava. Era as correntes caírem do braço de ferro um dos oito homens precipitava-se, alargava-as, os outros puxavam os sacos.

_ Eh! lá!

De novo havia um rolar de ferros no convés, as correntes subiam enquanto eles arrastavam os sacos. Do alto a claridade Caía fazendo uma bolha de luz, que se apagava nas trevas dos Cantos. E a gente, olhando para cima, via encostados cavalheiros de pijama e bonezinho, Com ar de quem descansa do banho a apreciar a faina alheia. Às vezes, as correntes ficavam um pouco alto. Eles agarravam-se às paredes de ferro com os passos vacilantes entre os sacos e, estendendo o tronco nu e suarento, as suas mãos preênseis puxavam a Carga em esforços titânicos.

_ Eh! lá!

Na embarcação, fora, os mesmos movimentos, o mesmo gasto de forças e de tal forma regular que em pouco eram movimentos correspondentes, regulados pela trepidação do guincho, os esforços dos que se esfalfavam no porão e dos que se queimavam ao sol.

Até horas tardes da manhã trabalharam assim, indiferentes aos

botes, às lanchas, à animação especial do navio. Quando chegou a vez da comida, não se reuniram. Os do porão ficaram pOr lá mesmo, com a respiração intercortada, resfolegando, engolindo O pão, sem vontade.

Decerto pela minha face eles compreenderam que eu Os deplorava. Vagamente, o primeiro falou; outrO disse-me qualquer coisa e eu Ouvi as ideias daqueles corpos que O trabalho rebenta. A principal preocupação desses entes são as firmas dos estivadores. Eles as têm de cOr, citam de seguida, sem errar uma: Carlos Wallace, Melo e François, Bernardino Correia Albino, Empresa EstiVadOra, Picasso e C., Romão Conde e C., Wilson, Sons, José Viegas Vaz, Lloyd Brasileiro, CaptOn Jones. Em cada uma dessas casas o ternO varia de número e até de Vencimentos, como por exemplo _O Lloyd, que paga sempre menos que qualquer outra empresa.

Os homens cOm quem falava têm uma força de vontade incrível. Fizeram com o próprio esforço uma classe, impuseramna. Há doze anos não havia malandro que, pegado na Gamboa, não se desse lOgO como trabalhador de estiva. Nesse tempo não havia a associação, não havia O sentimento de classe e os pobres estrangeiros pegados na Marítima trabalhavam por três mil réis dez horas de sol a sol. Os operários reuniram-se. Depois da revolta, começou a se fazer sentir O elemento brasileiro e, desde então, foi uma longa e pertinaz conquista. Um homem preso, que se diga da estiva, é, horas depois, confrontado com um sócio da União, tem que apresentar o seu recibo de mês. Hoje, estão todos ligados, exercendo uma mútua policia para a moralização da classe. A União dos Operários Estivadores consegue, com uns estatutos que a defendem habilmente, o seu nobre fim. Os defeitos da raça, as disputas, as rusgas são consideradas penas; a

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