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_ Ah! se eu pudesse Comprar aquele!

_ E só quarenta e cinco! E aquele reloginho, vês? de ouro...

Mas, lá dentro, o joalheiro abre a comunicação elétrica, e de súbito, a vitrina, que morria na penumbra, acende violenta, crua, brutalmente, fazendo faiscar os ouros, cintilar os brilhantes, Coriscar os rubis, explodir a luz veludosa das safiras, o verde das esmeraldas, as opalas, os esmaltes, o azul das turquesas. Toda a montra é um tesouro no brilho Cegador e alucinante das pedrarias.

Elas olham sérias, o peito a arfar. Olham muito tempo e, ali, naquele trecho de rua civilizada, as pedras preciosas operam, nas sedas dos escrínios, os sortilégios cruéis dos antigos ocultistas. As mãozinhas bonitas apertam o cabo da sombrinha como querendo guardar um pouco de tanto fulgor; os lábios pendem no esforço da atenção; um vinco ávido acentua os semblantes. Onde estará o príncipe encantador? Onde estará o velho d. João?

Um suspiro mais forte _ a coragem da que se libertou da hipnose _ fá-las despegar-se do lugar. É noite. A rua delira de novo. A porta dos Cafés e das Confeitarias, homens, homens, um estridor, uma vozeria. Já se divisam perfeitamente as pessoas no Largo de S. Francisco _ onde estão os bondes para a Cidade Nova, para a Rua da América, para o Saco. Elas tomam um ar honesto. Os tacões das botinas batem no asfalto. Vão como quem tem pressa, como quem perdeu muito tempo.

Da Avenida Uruguaiana para diante não olham mais nada,

caladas, sem comentários.

Afinal chegam aO Largo. Um adeus, dois beijos, “até amanhã!”

Até amanhã! Sim, elas voltarão amanhã, elas voltam todo dia, elas conhecem nas suas particularidades todas as montras da feira das tentações; elas continuarão a passar, à hora do desfalecimentO da artéria, mendigas do luxo, eternas fulanitas da vaidade, sempre com a ambição enganadOra de poder gozar as joias, as plumas, as rendas, as flores.

Elas hão de voltar, pobrezinhas _ porque a esta hora, no canto do bonde, tendo talvez ao lado O conquistador de sempre, arfalhes o peito e têm as mãos frias com a ideia desse luxo corrosivo. Hão de voltar, caminho da casa, parando aqui, parando acolá, na embriaguez da tentação _ porque a sorte as fez mulheres e as fez pobres, porque a sorte não lhes dá, nesta vida de engano, senão a miragem dO esplendor para perdê-las mais depressa.

E haveis então de vê-las passar, as mariposas dO luxo, no seu passinhO modesto, duas a duas, em pequenos grupos, algumas loiras, Outras morenas...

Os Trabalhadores de Estiva

As 5 da manhã ouvia-se um grito de máquina rasgando o ar. Já o cais, na claridade pálida da madrugada, regurgitava num vai-eVem de carregadores, catraieiros, homens de bote e Vagabundos maldormidos à beira dos quiosques. Abriam-se devagar os botequins ainda com os bicos de gás acesos; no interior os caixeiros, preguiçosos, erguiam os braços com bocejos largos. Das ruas que Vazavam na calçada rebentada do cais, afluía gente, sem cessar, gente que surgia do nevoeiro, com as mãos nos bolsos, tremendo, gente que se metia pelas bodegas e parava à beira do quiosque numa grande azáfama. Para o cais da alfândega, ao lado, um grupo de ociosos olhava através das frinchas de um tapume, rindo a perder; um carregador, encostado aos umbrais de uma porta, lia, de óculos, o jornal, e todos gritavam, falavam, riam, agitavam-se na frialdade daquele acordar, enquanto dos botes policrômicos homens de camisa de meia ofereciam, aos berros, um passeiozinho pela baía. Na curva do horizonte o sol de maio punha manchas sangrentas e a luz da manhã abria, como desabrocha um lírio, no céu pálido.

Eu resolvera passar o dia com os trabalhadores da estiva e, naquela confusão, Via-os vir chegando a balançar o corpo, com a Comida debaixo do braço, muito modestos. Em pouco, a beira do Cais ficou Coalhada. Durante a última gréve, um delegado de polícia dissera-me:

_ São criaturas ferozes! Nem a tiro.

Eu via, porém, essas fisionomias resignadas à luz do sol e elas me impressionavam de maneira bem diversa. Homens de excessivo desenvolvimento muscular, eram todos pálidos _ de um pálido embaciado como se lhes tivessem pregado à epiderme um papel amarelo, e assim, encolhidos, Com as mãos nos bolsos, pareciam um baixo-relevo de desilusão, uma frisa de angústia.

ACerquei-me do primeiro, estendi-lhe a mão:

_ Posso ir Com vocês, para ver?

Ele estendeu também a mão, mão degenerada pelo trabalho, com as falanges recurvas e a palma Calosa e partida.

_ Por que não? Vai ver apenas o trabalho, fez Com amarga voz.

E quedou-se, outra vez, fumando.

_ E agora a partida?

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