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burguesa, que parecem sorrir com honestidade _ a Rua de Haddock Lobo; ruas em que não se arrisca a gente sem volver os olhos para trás a ver se nos vêem _a Travessa da Barreira; ruas melancólicas, da tristeza dos poetas; ruas de prazer suspeito próximo do centro urbano e como que dele muito afastadas; ruas de paixão romântica, que pedem virgens loiras e luar.

Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada bairro?

A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. Há trechos em que a gente passa como se fosse empurrada, perseguida, corrida _ são as ruas em que os passos reboam, repercutem, parecem crescer, clamam, ecoam e, em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço. Outras que se envolvem no mistério logo que as sombras descem _ o Largo de Paço. Foi esse largo o primeiro esplendor da cidade. Por ali passaram, na pompa dos pálios e dos baldaquins d,ouro e púrpura, as procissões do Enterro, do Triunfo, do Senhor dos Passos; por ali, ao lado da Praia do Peixe, simples vegetação de palhoças, o comércio agitava as suas primeiras elegâncias e as suas ambições mais fortes. O largo, apesar das reformas, parece guardar a tradição de dormir cedo. A noite, nada o reanima, nada o levanta. Uma grande revolução morre no seu bojo como um suspiro; a luz leva a lutar com a treva; os próprios revérberos parece dormitarem, e as sombras que por ali deslizam são trapos da existência almejando o fim próximo, ladrões sem pousada, imigrantes esfaimados... Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia, trechos da cidade que lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há homens em esteiras, dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos admiremos. Somos reflexos. O Beco da Música ou o Beco da Fidalga reproduzem a alma das ruas de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das ruas da África, e até, se acreditarmos na fantasia de Heródoto, das ruas do antigo Egito. E por quê? Porque são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes. Abri uma dessas pocilgas que são a parte do seu organismo. Haveis de ver chineses bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras, toda a estranha vida dos portos de mar. E esses becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a miséria das imigrações, e o vício, o grande vício do mar e das colônias...

Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm ideias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livres-pensadoras e até ruas sem religião.Trafalgar Square, dizia o mestre humorista Jerome, não tem uma opinião teológica definitiva. O mesmo se pode dizer da Praça da Concórdia de Paris ou da Praça Tiradentes. Há criatura mais sem miolos que o Largo do Rocio? Devia ser respeitável e austero. Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um grito que nunca deu. Pois bem: não há sujeito mais pândego e menos sério do que o velho ex-Largo do Rocio. Os seus sentimentos religiosos oscilam entre a depravação e a roleta. Felizmente, outras redimem a sociedade de pedra e cal, pelo seu culto e o seu fervor. A Rua Benjamin Constant está neste caso, é entre nós um tremendo exemplo de confusão religiosa. Solene, grave, guarda três templos, e parece dizer com circunspecção e o ar compenetrado de certos senhores de todos nós conhecidos:

_ Faço as obras do Coração de Jesus, creio em Deus, nas orações, nos bentinhos e só não sou positivista porque é tarde

para mudar de crença. Mas respeito muito e admiro Teixeira Mendes...

Nós, os homens nervosos, temos de quando em vez alucinações parciais da pele, dores fulgurantes, a sensação de um contacto que não existe, a certeza de que chamam por nós. As ruas têm os rolos, as casas mal assombradas, e há até ruas possessas, com o diabo no corpo. Em S. Luís do Maranhão há uma rua sonâmbula muito menos cacete que a ópera célebre do mesmo nome. Essa rua é a Rua de Santa Ana, a lady Macbeth da topografia. Deu-se lá um crime horrível. As dez horas, a rua cai em estado sonambúlico e é só gritos, clamores: sangue! sangue!

Ruas assim ainda mostram o que pensam. Talvez as outras tenham maiores delírios, mas são como os homens normais _ guardam dentro do cérebro todos os pensamentos extravagantes. Quem se atreveria a resumir o que num minuto pensa de mal, de inconfessável, o mais honesto cidadão? Entre as ruas existem também as falsas, as hipócritas, com a alma de Tartufo e de Iago. Por isso os grandes mágicos do interior da África Central, que dos sertões adustos levavam às cidades inglesas do litoral sacos d,ouro em pó e grandes macacos tremendos, têm uma cantiga estranha que vale por uma sentença breve de Catão:

O di ti a uê, chê
F ,u, a uá ny
Odé, odá, bi ejô
Sa lo dê

Sentença que em eubá, O esperanto das hOrdas selvagens, quer dizer apenas isto: rua foi feita para ajuntamentos. Rua é como cobra. Tem veneno. Foge da rua!

Mas O importante, O grave, é ser a rua a causa fundamental da diversidade dos tipOs urbanos. Não sei se lestes um curioso livro de E. Demolins, Comment la route crée le type social. É uma revOluçãO nO ensino da Geografia. “A causa primeira e decisiva da diversidade das raças, diz ele, é a estrada, O caminho que os homens seguirem. Foi a estrada que criou a raça e o tipo social. Os grandes caminhos do globo fOram, de qualquer forma, os alambiques poderosos que transformaram Os pOvOs. Os caminhos das grandes estepes asiáticas, das tundras siberianas, das savanas da América Ou das flOrestas africanas insensivelmente e fatalmente criaram O tipo tártarO-mOngOl, o lapão-esquimó, o pele-vermelha, O índiO, o negro”.

A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por issO, ela está para a grande cidade como a estrada está para O mundo. Em embrião, é O princípio, a causa dOs pequenos agrupamentos de uma raça idêntica. Daí, em muitOs sítios da terra as aldeias terem O único nOme de rua. Quando aumentam e crescem depois, Ou pela devoção da maioria dos habitantes Ou pOr uma impressão de local, acrescentam ao substantivo rua O complemento que das Outras as deve diferençar. Em Portugal esse fato é comum. Há uma aldeia de 700 habitantes no Minho que se chama mOdestamente Rua de S. Jorge, uma outra no Douro que é a Rua da Lapela, e existem até uma Rua de Cima e uma Rua de Baixo.

Nas grandes cidades a rua passa a criar O seu tipo, a plasmar o

moral dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas. Vós todos deveis ter ouvido ou dito aquela frase:

_ Como estas meninas cheiram a Cidade Nova!

Não é só a Cidade Nova, sejam louvados os deuses! Há meninas que cheiram a Botafogo, a Haddock Lobo, a Vila Isabel, como há velhas em idênticas condições, como há homens também. A rua fatalmente cria o seu tipo urbano como a estrada criou o tipo social. Todos nós conhecemos o tipo do rapaz do Largo do Machado: cabelo à americana, roupas amplas à inglesa, lencinho minúsculo no punho largo, bengala de volta, pretensões às línguas estrangeiras, calças dobradas como Eduardo VII e toda a snobopolis do universo. Esse mesmo rapaz, dadas idênticas posições, é no Largo do Estácio inteiramente diverso. As botas são de bico fino, os fatos em geral justos, o lenço no bolso de dentro do casaco, o cabelo à meia cabeleira com muito óleo. Se formos ao Largo do Depósito, esse mesmo rapaz usará lenço de seda preta, forro na gola do paletot, casaquinho curto e calças obedecendo ao molde corrente na navegação aérea _ calças à balão.

Esses três rapazes da mesma idade, filhos da mesma gente honrada, às vezes até parentes, não há escolas, não há contactos passageiros, não há academias que lhes tranformem o gosto por certa cor de gravatas, a maneira de comer, as expressões, as ideias _ porque cada rua tem um stock especial de expressões, de ideias e de gostos. A gente de Botafogo vai às “primeiras” do Lírico, mesmo sem ter dinheiro. A gente de Haddock Lobo tem dinheiro mas raramente vai ao Lírico. Os moradores da Tijuca

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