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pesar. Todos os anos as suas cantigas comemoram as fatalidades culminantes.

Neste momento, porém, os “Amantes de Sereno” resolveram voltar. Houve um trilo de apito, a turba fendeu-se. Dois rapazinhos vestidos de belbutina começaram a fazer “letra” com grandes espadas de pau prateado, dando pulos quebrando o corpo. Depois, o achinagú ou homem da frente, todo coberto de lantejoulas, deu uma volta sob a luz clara da luz elétrica e o bolo todo golfou _ diabos, palhaços, mulheres, os pobres que não tinham conseguido fantasias e carregavam os archotes, os fogos de bengala, as lâmpadas de querosene. A multidão aproveitou o vazio e precipitou-se. Eu e meu amigo caímos na corrente impetuosa.

Oh! sim! ele tinha razão! O cordão é o carnaval, é o último elo das religiões pagãs, é bem o conservador do sagrado dia do deboche ritual; o cordão é a nossa alma ardente, luxuriosa, triste, meio escrava e revoltosa, babando lascívia pelas mulheres e querendo maravilhar, fanfarrona, meiga, bárbara, lamentável. .

Toda a rua rebentava no estridor dos bombos. Outras canções se ouviam. E, agarrado ao braço do meu amigo, arrastado pela impetuosa corrente aberta pela passagem dos “Amantes do Sereno”, eu continuei rua abaixo, amarrado ao triunfo e à fúria do cordão!...

TRÊS ASPECTOS DA MISÉRIA

As Mariposas do Luxo

_ Olha, Maria...
_ E verdade! Que bonito!

As duas raparigas curvam-se para a montra, Com os olhos ávidos, um Vinco estranho nos lábios.

Por trás do vidro polido, arrumados com arte, entre estatuetas que apresentam pratos com bugingangas de fantasia e a fantasia policroma de Coleções de leques, os desdobramentos das sedas, das plumas, das guipures, das rendas.

É a hora indecisa em que o dia parece acabar e o movimento febril da Rua do Ouvidor relaxa-se, de súbito, Como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia. Ainda não acenderam os combustores, ainda não ardem a sua luz galvânica os focos elétricos. Os relógios acabaram de bater, apressadamente, seis horas. Na artéria estreita cai a luz acinzentada das primeiras sombras _ uma luz muito triste, de saudade e de mágoa. Em algumas casas correm com fragor as cortinas de ferrO. No altO, como o teto custoso dO beco interminável, o céu, de uma pureza admirável, parecendo feito de esmaltes translúcidos superpostOs, rebrilha, comO uma joia em que se tivessem fundido o azul de Nápoles, O verde perverso de Veneza, Os ouros e as pérolas do Oriente.

Já passaram as professional beauties, cujos nomes Os jornais citam; já voltaram da sua hora de cOstureiro Ou de joalheiro as damas dO alto tom; e Os nomes cOndecOrados da finança e Os condes do Vaticano e Os rapazes elegantes e os deliciosos vestidos claros airosamente ondulantes já se sumiram, levados pelos “autos”, pelas parelhas fidalgas, pelOs bondes burgueses. A rua tem de tudo isso uma vaga impressão, como se estivesse sob o domínio da alucinação, vendo passar um préstitO que já passou. Há um hiato na feira das vaidades: sem literatOs, sem poses, sem flirts. Passam apenas trabalhadores de volta da faina e Operárias que mourejaram todo O dia.

Os Operários vêm talvez mal-arranjados, com a lata do almoço presa ao dedo mínimo. Alguns vêm de tamancos. Como são feios os operários ao lado dOs mOcinhOs bonitos de ainda há pouco! Vão conversando uns com os outros, Ou calados, metidos com o próprio eu. As raparigas ao contrário: vêm devagar, muito devagar, quase sempre duas a duas, parando de montra em montra, olhando, discutindo, vendo.

_ Repara só, J esuína.

_ Ah! minha filha. Que lindo!...

Ninguém as conhece e ninguém nelas repara, a não ser um ou outro caixeiro em mal de amor ou algum pícaro sacerdote de conquistas.

Elas, coitaditas! passam todos os dias a essa hora indecisa, parecem sempre pássaros assustados, tontos de luxo, inebriados de olhar. Que lhes destina no seu mistério a vida cruel? Trabalho, trabalho; a perdição, que é a mais fácil das hipóteses; a tuberculose ou o alquebramento numa ninhada de filhos. Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua

quimera.

São mulheres. Apanham as migalhas da feira. São as anônimas, as fulanitas do gozo, que não gozam nunca. E então, todo dia, quando céu se rocalha de ouro e já andam os relógios pelas seis horas, haveis vê-las passar, algumas loiras, outras morenas, quase todas mestiças. A idade dá-lhes a elasticidade dos gestos, o jeito bonito do andar e essa beleza passageira que chamam _ do diabo. Os vestidos são pobres: saias escura sempre as mesmas; blusa de chitinha rala. Nos dias de chuva um parágua e a indefectível pelerine. Mas essa miséria é limpa, escovada. As botas brilham, a saia não tem uma poeira, as mãos foram cuidadas. Há nos lóbulos de algumas orelhas brincos simples, fechando as blusas lavadinhas, broches “montana”, donde escorre o fio de uma chatelaine.

Há mesmo anéis _ correntinhas de ouro, pedras que custam

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