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_ O Afoxé? insisti, pasmado.

_ Sim, o Afoxé. É preciso ver nesses bandos mais dO que uma correria alegre _ a psicologia de um povo. O cordão tem antes de tudo O sentimento da hierarquia e da ordem.

_ A ordem na desordem?

_ E um lema nacional. Cada cordão tem uma diretoria. Para as danças há dois fiscais, dois mestres-sala, um mestre de canto, dois porta-machados, um achinagú ou hOmem da frente, vestido ricamente. Aos títulos dos cordões pode-se aplicar uma das leis de filosofia primeira e concluir daí todas as ideias dominantes na populaça. Há uma infinidade que são caprichOsos e outros

teimosos. Perfeitamente pessoal da lira: _ Agora e capricho! Quando eu teimo, teimo mesmo!

Nota depois a preocupação de maravilhar, com Ouro, com prata, com diamantes, que infundem O respeito da riqueza _ Caju de Ouro, Chuveiro de OurO, Chuva de Prata, Rosa de Diamantes, e às vezes coisas excepcionais e únicas _ Relâmpago do Mundo NOVO. Mas o da grossa população é a flor da gente, tendo da harmonia a constante impressão das gaitas, cavaquinhOs, dos violões, desconhecendo a palavra, talvez apenas sentindo-a como certos animais que entendem discursos e sofrem a ação dos sons. Há quase tantos cordões intitulados Flor e Harmonia, como há Teimosos e CaprichosOs. Um mesmo chama-se Flor da Harmonia, cOmO há OutrO intitulador FlOr do Café.

_ Não te parece? Vai-se aos poucos detalhando a alma nacional nos estandartes dos cordões. Oliveira Gomes, esse ironista sutil, foi mais longe, estudou-lhes a zoologia. Mas, se há Flores, Teimosos, Caprichosos e Harmonias, os que querem espantar com riquezas e festas nunca vistas, há também os preocupados com as vitórias e os triunfos, os que antes de sair já são Filhos do Triunfo da Glória, Vitoriosos das Chamas, Vitória das Belas, Triunfo das Morenas.

_ Acho gentil essa preocupação de deixar vencer as mulheres.

_ A morena é uma preocupação fundamental da canalha. E há ainda mais, meu amigo, nenhum desses grupos intitula-se republicano, Republicanos da Saúde, por exemplo. E sabe por quê? Porque a massa é monarquista. Em compensação abundam os reis, as rainhas, os vassalos, reis de ouro, vassalos da aurora, rainhas do mar, há patriotas tremendos e a ode ao Brasil vibra infinita.

Neste momento tínhamos chegado a uma esquina atulhada de gente. Era impossível passar. Dançando e como que rebentando as fachadas com uma “pancadaria” formidável, estavam os do “Prazer da Pedra Encantada” e cantavam:

Tanta folia, Nenê!
Tanto namoro;

A “Pedra Encantada”, ai! ai!

Coberta de ouro!

E o coro, furioso:

Chegou o povo, Nenê Floreada
E o pessoal, ai! ai!

Da “Pedra Encantada”.

Mas a multidão, sufocada, ficava em derredor da “Pedra” entaipada por outros quatro cordões que se encontravam numa confluência perigosa. Apesar do calor, corria um frio de medo; as batalhas de confetti cessavam; os gritos, os risos, as piadas apagavam-se, e só, convulsionando a rua, como que sacudindo as casas, como que subindo ao céus, o batuque confuso, epiléptico, dos atabaques, “xequedés”, pandeiros e tambores, os pancadões dos bombos, os urros das cantigas berradas para dominar os rivais, entre trilos de apitos, sinais misteriosos cortando a zabumbada delirante como a chamar cada um dos tipos à realidade de um compromisso anterior. Eram a “Rosa Branca”, negros lantejoulantes da Rua dos Cajueiros, os “Destemidos das Chamas”, os “Amantes do Sereno” e os “Amantes do Beijaflor”! Os negros da “Rosa”, abrindo muito as mandíbulas, cantavam:

No Largo de S. Francisco
Quando a corneta tocou

Era o triunfo “Rosa Branca”
Pela Rua do OuVidô.

Os “Destemidos”, em Contraposição, eram patriotas:

Rapaziada, bate,
Bate Com maneira
Vamos dar um Viva

A bandeira brasileira

Os “Amantes do Sereno”, dengosos, suavizavam:

Aonde vais, Sereno
Aonde vais, com teu amor?

Vou ao Campo de Santana
Ver a batalha de flô.

E no meio daquela balbúrdia infernal, Como uma nota ácida de turba que Chora as suas desgraças divertindo-se, que soluça cantando, que se mata sem compreender, este soluço mascarado, esta Careta d”Arlequim Choroso elevava-se do “Beija-Flor”:

A 21 de janeiro
O “Aquidabã” incendiou
Explodiu o paiol de pólvora

Com toda gente naufragou

E o coro:

Os filhinhos choram
Pelos pais queridos.
As viúvas soluçam

Pelos seus maridos.

Era horrível. Fixei bem a face intumescida dOs cantores. Nem um deles sentia Ou sequer compreendia a sacrílega menipeia desvairada dO ambiente, Só a alma da turba consegue O prodígio de ligar O sofrimento e O gozo na mesma lei de fatalidade, só o povO diverte-se não esquecendo as suas chagas, só a populaça desta terra de sol encara sem pavor a morte nOs sambas macabros do Carnaval.

_ Estás atristado pelOs versos do “Beija-Flor”? Há uma porção de grupos que comentam a catástofre. Ainda há instantes

f

passou a “Mina de Ouro”. Sabes qual e a marcha dessa sociedade? Esta sandice tétrica:

Corremos, corremos
Povo brasileiro
Para salvar dO “Aquidabâ”

Os patriotas marinheiros.

Isto nO carnaval quando todos nós sentimos irreparável a desgraça. Mas O cordão perderia a sua superioridade de vivo reflexo da turba se não fosse esse misto indecifrável de dOr e

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