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um costume histórico e de um hábito infiltrado em todo o Brasil.

_ Explica-te! bradei eu, fugindo para outra porta, sob uma avalanche de confetti e Velhas serpentinas Varridas de uma sacada.

Atrás de mim, todo sujo, Com fitas de papel Velho pelos ombros, o meu Companheiro Continuou:

_ Eu explico. A dança foi sempre uma manifestação cultual. Não há danças novas; há lentas transformações de antigas atitudes de Culto religioso. O bailado Clássico das bailarinas do Scala e da Ópera tem uma série de passos do Culto bramânico, o minueto é uma degenerescência da reverência sacerdotal, e o cakewalk e o maxixe, danças delirantes, têm o seu nascedouro nas Correrias de Dionísios e no pavor dos orixalás da Africa. A dança saiu dos templos; em todos os templos se dançou, mesmo nos Católicos.

O meu amigo falava intercortado, gesticulando. Começava desconfiar da sua razão. Ele, entretanto, esticando o dedo, bradava no torvelinho da rua:

_ O Carnaval é uma festa religiosa, é o misto dos dias sagrados de Afrodita e Dionísios, vem Coroado de pâmpanos e cheirando a luxúria. As mulheres entregam-se; os homens abremse; os instrumentos rugem; estes três dias ardentes, coruscantes são como uma enorme sangria na congestão dos maus instintos. Os cordões saíram dos templos! Ignoras a origem dos Cordöes? Pois eles vêm da festa de N. Sa do Rosário, ainda nos tempos coloniais. Não sei por que os pretos gostam da N. Sa do Rosário... Já naquele tempo gostavam e saíam pelas ruas vestidos de reis, de bichos, pajens, de guardas, tocando instrumentos africanos, e paravam em frente à casa do vice-rei a dançar e cantar. De uma feita, pediram ao Vice-rei um dos escravos para fazer de rei. O homem recusou a lisonja que dignificava o servo, mas permitiu Os folguedos. E estes folguedos ainda subsistem com simulacros de batalha, e quase transformados, nas cidades dO interior. Havia uma certa cOnexãO nas frases do cavalheiro que me acompanhava; mas, cada vez mais receoso da apologia, eu andava agora quase a correr. Tive, porém, de parar. Era O “Grêmio Carnavalesco Destemidos do lnferno”, arrastando seis estandartes cobertos de coroas de louro. Os homens e as mulheres, vestidos de preto, amarelo e encarnado, pingandO suor, zé-pereiravam:

Os roxinóis estão a cantar
POr cima do carramanchão
Os Destemidos do Inferno

TenhO por eles paixão.
E lOgO Vinha a chula:
Como és tãO linda!
Como és formosa!
Olha Os destemidos

No galho da rosa.

_ COmO é idiota!

_ É admirável. Os poetas simbolistas são ainda mais obscuros. Ora escuta este, aqui ao lado.

Vinte e sete bombos e tambores rufavam em torno de nós com a fúria macabra de nos desparafusar os tímpanos. Voltei-me para onde me guiava o dedo conhecedor do Píndaro daquele desespero e vi que cerca de quarenta seres humanos cantavam com o lábio grosso, úmido de cuspo, estes versos:

Três vezes nove

Vinte e sete

Bela morena

Me empresta seu leque
Eu quero conhecer
Quem é o treme terra?
No campo de batalha

Repentinos dá sinal da guerra.

Entretanto, os Destemidos tinham parado também. Vinham em sentido contrário, fazendo letras complicadas pela rua forrada de papel policromo, sob a ardência das lâmpadas e dos arcos, o grupo da “Rainha do Mar” e o grupo dos “Filhos do Relâmpago do Mundo Novo”. Os da Rainha cantavam em bamboleios de onda:

Moreninha bela

Hei de te amar
Sonhando contigo

Nas ondas do mar.

Os do Relâmpago, chocalhando chocalhos, riscando xequedês, berravam mais apressados:

No triná das ave

Vem rompendo a aurora
Ela de saudades
Suspirando chora.

Sou o Ferramenta

Vim de Portugá

O meu balão

Chama Nacioná.

Senhor Deus! Era a loucura, o pandemônio do barulho e da sandice. O fragor porém aumentava, como se concentrando naquele ponto, e, esticando os pés, eu Vi por trás da “Rainha do Mar” uma serenata, uma autêntica serenata com cavaquinhos, Violões, Vozes em ritornelo sustentando fermatas langorosas. Era

a “Papoula do Japão”:

Toda a gente pressurosa
Procura flor em botão

E uma flor recém-nascida

A papoula do Japão
Docemente se beijava
Uma... rola

Atraída pelo aroma

Da... papoula...
_ Vamos embora. Acabo tendo uma Vertigem.

_ Admira a Confusão, o caos ululante. Todos os sentimentos todos os fatos do ano reViraVolteiam, esperneiam, enlanguescem, revivem nessas quadras feitas apenas para acertar com a toada da Cantiga. Entretanto, homem frio, é o povo que fala. Vê o que é para ele a maior parte dos acontecimentos.

_ Quantos cordões haverá nesta rua?

_ Sei lá _ quarenta, oitenta, Cem, dançando em frente à redação dos jornais. Mas, caramba! olha o brilho dos grupos, louva-lhes a prosperidade. O Cordão da Senhora do Rosário passou ao cordão de Velhos. Depois dos Velhos os Cucumbis. Depois dos Cucumbis os Vassourinhas. Hoje são duzentos.

_ E verdade, Com a feição feroz da ironia que esfaqueia os deuses e os Céus _ fiz eu recordando a frase apologista.

_ Sim, porque a origem dos Cordões é o Afoxé africano, em que se debocha a religião.

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