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outro lado, patinhando a lama viscosa. Todos os trajes, todas as cores se confundiam num amálgama formidável, todos os temperamentos, todas as taras, todos os excessos, todas as perversões se entrelaçavam. Quis notar o elemento predominante. Num trecho havia mais pretas com soldados. Adiante logo, o domínio era de gente de serviço braçal, um pouco mais longe a tropa se fazia de rapazelhos do comércio e, se dávamos um passo, outro grupo de mocinhas com senhores conquistadores se nos antolhava. Todo esse pessoal gritava.

Logo na subida encontrei um meninote engolindo uns restos de vinho do Porto pelo gargalo da garrafa. Em meio do caminho um grupo do Clube dos Democráticos, de guarda-chuva branco e preto, tocava guitarras e assobios.

De todos os lados partiam cantos de galo. Os cocoricós clássicos vinham finos, grossos, roufenhos, em falsete: _ Cocoricó! Cocoricô!

_Já ouviste cantar o galo?

_ Pois hoje não é a missa dele?

_ Cocoricó! pega ele pra capar!

_ Pega!

A igrejinha estava toda iluminada exteriormente à luz elétrica. Defronte de sua fachada lateral haviam armado um botequim. A turba arfava aí, presa entre a bodega e o templo. Quando eu passei, porém, a bodega fora devorada e bebida. Os caixeiros tinham trepado para os balcões no desejo de apreciar a cena. Fiz um Violento esforço para entrar na igreja. À porta havia uma Verdadeira luta e dentro ninguém se podia mexer. Divisei apenas como indicação humilde do dia _ um presepe no lado esquerdo, um presepe com pano de fundo representando fielmente um trecho de Cascadura, e estava assim embebido, quando de repente estalou o rolo, o rolo rápido e habitual. Um sujeito apanhara uma bengalada, levantara o guarda-chuva, uma menina gritara: _ nunca mais venho à missa! E no roldão da turba medrosa, de novo caí na ladeira, ouvindo os cocoricós, as chufas, as graças sórdidas:

_ Pega pra capar! Cocoricó! Já ouviste o galo?

No céu cor de chumbo, ameaçador de temporais, espocavam girândolas de foguetes. E todo aquele trecho, mais aquecido, mais feroz, mais cheio de gente redobrava de deboche, de frenesi pândego, de loucura, quebrando copos, cantando, assobiando, praguejando, ganindo.

Atirei-me dentro do automóvel, exausto. A máquina disparou outra Vez, lutando agora contra a massa dos carros, dos automóveis, dos tramways que chegavam.

_ Onde é a Lapa do Desterro?

_ Quer ir lá? E uma igreja de gente pobre. E na Lapa. _ Pois vamos lá.

O automóvel quebrou pela Rua da Lapa, parou defronte da velha igreja. Eram duas horas da manhã. Havia à porta a mesma matula de homens endomingados à espera da conquista, a mesma sarabanda de sirigaitas. Entrei. O tapete do templo, velho, esfarripado, tinha por cima, em alguns trechos, folhas de mangueira. No altar-mor, dos lados, entre panos azuis, ardiam dois bicos auer, e aquela luz azul Como transfigurava o rebátulo, os acessórios, os ouros despolidos. A Concorrência era menor, na nave, mulheres de xale formavam roda conversando. Andei por ali tristemente. Ao sair, porém, vi de joelhos um homem.

De joelhos? Na missa do galo? Deus! Quem seria aquele pobre coitado? Aproximei-me. Era um rapaz _ teria no máximo vinte anos. Ao lado o seu Chapelão de Coco repousava junto ã grossa bengala. No seu corpo ajustava-se demais um grosso fato de inverno aldeão. De mãos postas, a face ingênua voltada para o altar, esse ser, numa noite báquica, era tão anormal, tão extraordinário, que eu Cheguei bem perto, olhei bem, fui ao ponto de curvar-me para lhe espiar os olhos. O pobre sobressaltou-se.

_ Meu senhor!

_ Que está Você a fazer aí?

_ Que estava? Ah? perdão...Estava a rezar, estava a pedir ao Menino Deus que dê saúdinha aOs pais lá na terra e que me proteja.

_ Donde é Você?

_ Saberá V. Sa que dO DOuro, sim senhor.

Falava de joelhos, a sorrir para mim; pObre alma ingênua e pura de aldeia, pobre alma que se ia putrefazer na grande cidade, único coração que adorara Deus entre as dez mil pessoas vistas por mim!

Oh! Tive um ímpeto, O desejo de abraçá-lo, a sensação de quem, após uma longa desilusão, sente viva nO abismo fundo a flOr maravilhosa. Mas já em torno se fazia roda de Ociosos, já um sujeito surgira com um riso de trOça.

_ Pois faz muito bem. Adeus.

_ Adeus, meu senhor!

_ E continuou _ ó coisa incrível! _ de joelhos, voltado para Deus, lembrando a sua aldeia, lembrando Os paizinhos, pedindo o bem _ enquanto pela cidade inteira as ceatas e as pândegas desencadeavam Os ímpetos desaçaimados...

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