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o sol, a imagem da Virgem Mãe. Dois raios de filó prata bambamente pendem do azul sob o estábulo divino, iluminado a giorno. Descendo a montanha, montados em camelos, Vêm os três reis magos, vestidos à turca e o rei apressado é Baltasar, o preto. Pela encosta do monte as majestades lendárias encontram, sem pasmo, ânimos imperiais quase atuais: Napoleão na trágica atitude de Santa Helena, a defunta imperatriz do Brasil, Bismarck com a sua focinheira de molosso desacorrentado, uma bailarina com a perna no ar, e um boneco de cacete, calças abombachadas e chapéu ao alto... Iluminando a agradável confusão, velas de estearina morrem em castiçais de cobre.

O grupo carnavalesco chama-se Rei de Ouros. Logo que eu apareço e das janelas escancaradas a tropa me Vê, entoa a canção da entrada:

Tu-tu-tu quem bate à porta
Menina Vai ver quem é
É o triunfo Rei de Ouros

Com a sua pastora ao pé.

Dentro move-se, numa alegria carnavalesca, o bando de capoeiras perigosos da Rua da Conceição, de S. Jorge e da Saúde. A sala tem cadeiras em roda, ornamentadas de cetim vermelho, cortinas de renda com laçarotes estridentes. As matronas espapaçam-se nas cadeiras, suando, e, em movimentos nervosos, agitam-se à sua Vista mulatinhas de saiote Vermelho, brutamontes de sapatos de entrada baixa e calção de fantasia de velho e de rei dos diabos. Há um cheiro impertinente de suor e éter floral.

_ Uma Calamistrança pra seu doutô! brada o Dudu, um magro, Conhecido por inventar nomes engraçados, o Bruant da populaça

E a gente do reisado logo batendo palmas, pandeiros e berimbaus:

Ora Venha Ver o que temos di dá

Garrafas de Vinho, doCe de araçá.

A manifestação satisfaz. Dudu leva-me quase ã força para um lugar de honra e eu vejo uma mulatinha Com o cabelo ã Cléo de Merod, enfiada numa confusa roupagem rubra.

_ Quem é aquela?

_ É Etelvina. Tá servindo de porta-bandeira...

Não era necessária a explicação. O pessoal, quebrando todo em saracoteios exóticos, Cantava com as veias do pescoço saltadas:

Porta-bandeira deu siná,
Deu siná no Humaitá,
Porta-bandeira deu siná,

Deu síná tulou, tulou!

Aproveito a consideração do Dudu para compreender O presepe:

_ POr que diabo põem vocês O retrato da imperatriz ali?

_ A imperatriz era mãe dos brasileiros e está no céu.

_ Mas Napoleão, homem, Napoleão?

_ Então, gente, ele não foi rei dO mundo? Tudo está ali para honrar O menino Deus.

_ A bailarina também?

_ A bailarina é enfeite.

_ Guardo religiosamente esta profunda resposta.

Os do reisado cantam agora uma certa marcha que faz cócegas. Os versinhOs são errados, mas íntimos e, sibilizados pOr aquela gente ingenuamente feroz, dão impressões de carícias:

Sussu sOssega

Vai dromi teu sono

Está com medo diga,

Quer dinheiro, tome!

Que tem Sussu com a Epifania? Nada. Essas canções, porém, são toda a psicologia de um povo, e cada uma delas bastaria para lhe contar o servilismo, a carícia temerosa, o instinto da fatalidade que o amolece, e a ironia, a despreocupada ironia do malandro nacional.

_ Mas por que, continuo eu curioso, põem vocês junto do rei Baltasar aquele boneco de cacete?

_ Aquele é o rei da capoeiragem. Está perto do Rei Baltasar porque deve estar. Rei preto também viu a estrela. Deus não esqueceu a gente. Ora não sei se V. Sa conhece que Baltasar é pai da raça preta. Os negros da Angola quando vieram para a Bahia trouxeram uma dança chamada cungu, em que se ensinava a brigar. Cungu com o tempo virou mandinga e S. Bento.

_ Mas que tem tudo isso?...

_ Isso, gente, são nomes antigos da capoeiragem. Jogar capoeira é o mesmo que jogar mandinga.

Rei da capoeiragem tem seu lugar junto de Baltasar. Capoeiragem tem sua religião.

Abri os olhos pasmados. O negro riu.

_ V. Sa não conhece a arte? Hoje está por baixo. Valente de Verdade só há mesmo uns dez: João da Sé, Tito da Praia, Chico Bolivar, Marinho da Silva, Manuel Piquira, Ludgero da Praia, Manuel Tolo, Moisés, Mariano da Piedade, Cândido Baianinho, outros...Esses “cabras” sabiam jogar mandinga como homens...

_ Então os capoeiras estão nos presepes para acabar com as presepadas...

_ Sim senhor. Capoeiragem é uma arte, cada movimento tem um nome. É mesmo como sorte de jogo. Eu agacho, prendo V. Sa pelas pernas e Viro _ V. Sa virou balão e eu entrei debaixo. Se eu cair virei boi. Se eu lançar uma tesoura eu sou um porco, porque tesoura não se usa mais. Mas posso arrastar-lhe uma tarrafa mestra.

_ Tarrafa .?

f

_ E uma rasteira com força. Ou esperar o degas de galho, assim duro, com os braços para o ar e se for rapaz da luta, passar-lhe o tronco na queda, ou, se for arara, arrumar-lhe mesmo o bauú, pontapé na pança. Ah! V. Sa não imagina que porção de nomes tem o jogo. Só rasteira, quando é deitada, chama-se banda, quando com força tarrafa, quando

no ar para

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