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ouro, incenso e mirra para o menino que Herodes perseguirá.

Há os versículos de Mateus: “Jesus nasceu em Belém de Judá, nos tempos do rei Herodes. Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”; sabe-se que presepe significa etimologicamente estrebaria ou jaula. Os gnósticos vêm, com esses dois elementos, simbólicos, confusos; os sábios indagam de mais e, enquanto estes esterilmente escrevem páginas estéreis, os povos criam a legenda suave, e a legenda perdura, cresce, aumenta, esplende numa doce apoteose de perfumes e de bem.

Os presepes são uma criação popular. Antes dos artistas de Paris e Viena, que expõem nos salões do Campo de Marte e no Kunstlerhaus, o povo criou nos presepes o anacronismo religioso, o anacronismo que, segundo la Sizeranne, é a fé; pôs, como Breughel nos Peregrinos de Emaús e Beraud na Madalena entre os Fariseus, homens de hoje nas cenas do Velho Testamento.

Os presepes, como as telas do Renascimento, são as reconstituições religiosas com a cor local contemporânea. Os psicólogos podem psicologar num reisado a alma nacional e a intensidade da crença. Cristo para os homens simples está sempre, é a perene luz salvadora. Por isso cada presepe é um mundo onde homens e animais de todas as épocas renovam

anualmente a admiração de um suave milagre.

Fui ver numa das últimas noites de chuva alguns desses mundos de religião e de tradição.

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E impossível para os que Viram o bumba-meu-boi realizado pelo Venerável Melo Morais e o belicoso Dr. Silvio Romero, quase como uma reconstituição de costumes, imaginar o número de presepes que este ano tem o Rio. Há para mais de quarenta.

Começamos pelo presepe da Rua Frei Caneca, o Centro Pastoril, que tem uma diretoria composta dos Srs. Liberato Serra, presidente honorário; Manuel Novela, presidente; mais dos Srs. Pedro Hugo, Faria, Alfredo Belfort, Manuel de Macedo, Francisco de Paula Azevedo e Raul Machado. Os ensaios do reisado realizaram-se na Rua Formosa e os diretores alugaram a sala e a primeira alcova da casa da Rua Frei Caneca apenas para que a festa redobrasse de brilho.

A sala está toda enfeitada, com dois pequenos estrados feitos de madeira, onde devem sentar a polícia e os reporters, um defronte da outro, sempre juntos e sempre adulados.

Ao fundo ergue-se o presente que toma a alcova. O céu deste ameaça chuva; grossas nuvens algodoam a sua celestial Vastidão. As estrelas, entretanto, mais o sol e mais a lua, numa doce confraternização, atravessam nuvens e azul com o brilho fulgurante das malacachetas e das velas _ porque são de malacachetas as estrelas, e têm por trás uma vela providencial tanto a lua como o sol.

Da montanha a pico, por caminhos aspérrimos, vêm descendo os três reis lendários com um ar açodado de beduínos em fuga, e nessa descida, os seus olhos pintados Vão vendochalets suíços, animais no pasto, militares posteriores ao império do Tetrarca, mulherinhas gordas de avental e a luz da estrela que os guia escorrendo do Céu em dois grossos fios de prata. Embaixo, no primeiro plano, há um grande movimento. De um lado, ardendo na sombra do milagre e de alguns Copinhos Coloridos, está o estábulo, onde se dá o mistério do nascimento de Deus; de outro, uma fachada de papel de seda, em que eu imagino ver Jerusalém, Cuj as portas Caíram ao som das trombetas.

O Centro Pastoril tem um reisado em 3 atos, interpretado pela sras. lrma Serra, Georgina do Nascimento, Maria Fernandes, Elvira de Almeida, Elisa, Adelina, Esmeralda, Constança, Lauriana e outras meninas. Esse reisado é exatamente um auto como os fazia mestre Gil Vicente. Os personagens são o Guia, o Pastor Mestre, o Pastor, a Cigana, Diana Pastorinha, Galeguinho, Galego e Galega. O Natal é apenas o motivo da Cena. Trepado na gaiola destinada à imprensa ausente, diante de gaiola policial deserta, apreciei com sabor a evolução do auto e, batendo palmas, parecia à minha alma que remontáramos quatrocentos anos, ao tempo em que d. Manuel oferecia ao Papa elefantes brancos ajaezados d”ouro e o povo acreditava com temor em Deus.

No primeiro ato trata-se da chegada dos pastores e há o Canto do dia:

Salve estrela radiante
Doce infante de alegria,
Salve infante, salve aos homens,

E a doce Virgem Maria.

Depois a Cigana, no 2O atO, tem o papel preponderante: esmola, pede, abre a sacola para que as oferendas caiam, entre as graçolas do GaleguinhO, e no fim ficam os pastores todos sabendo que Jesus nasceu.

Mas Ouço pOr estes montes
Brandas vozes a cantar
Já daqui não me vou

Sem estes sons escutar.

Aí, no Centro Pastoril, a diretoria indica Outros presepes. Há muitos: na Rua Frei Caneca mais dois; na Rua de Santana três, Os nOS 130 e 27; na Rua BOm Jardim mais dois, em S. Diogo três, e ainda em S. Clemente, em S. Cristovão, no Estácio, em Itapagipe, em Catumbi _ pobres, humildes, cheios de pompa, modestos, numa diversidade curiosa e estranha. Conto numa noite só mais de quarenta.

O reisado faz-se em geral aos sábados, mas Os proprietários, que têm Deus na sala, conservam as casas abertas e iluminadas.

_ Dá-me licença?

_ E a casa de Deus, pode entrar.

Em alguns, senhoras e crianças olham, sOnOlentas, O presepe aO fundo, em outros a sala está inteiramente vazia ou os vigilantes dormem na crepitação das velas. Oh! a estética dos presepes! Que assombroso charivari de datas, que fonte de ideias e de observações! Em S. Clemente vem ao estábulo um batalhão francês, no da Rua de Santana, 130, há um lago com repuxo e peixes do tamanho dos reis magos, no da Rua da Imperatriz alguns caçadores e um padre conversam com S. José; em Itapagipe encontrei uma montanha suíça com uma vaqueira perto do rei Gaspar.

_ Por que fazem presepes? indago.

Uns respondem que por promessa, outros sorriem e não dizem palavra. São os mais numerosos. E a galeria continua a desfilar _ presepes que parecem pombais, feitos de arminho e penas de aves; presepes todos de bolas de prata com bonequinhos de biscuit; presepes armados com folhas de latão, castiçais com velas acesas e fotografias contemporâneas, tendo por lagos, pedaços de espelho e o burro da Virgem com um selim à moderna; presepes em que no meio do capim há casas de dois

andares com venezianas e caras de raparigas a janela _ uma infinidade inacreditável.

O mais interessante, porém, fui encontrar na praia Formosa, centro de um cordão carnavalesco de negros baianos. Essas criaturas dão-me a honra da sua amizade. O presepe está armado no quarto da sala de visitas.É inaudito, todo verde com lantejoulas de prata.

O céu, pintado por um artista espontâneo, tem, entre nuvens, sol com uma cara raspada de americano truster, a lua, maior que

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