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Velhos Cocheiros

Outro dia, ao saltar de um tílburi no antigo Largo do Paço, vi na boleia de um vis-à-vis pré-histórico a ventripotência colossal de um velho cocheiro. As duas mãos gorduchas ã altura do peito Como quem vai rezar, enfiado numa roupa esverdinhada, o automedonte roncava. Seria uma recordação literária ou a memória de uma fisionomia de infância? Seria o cocheiro da Safo, o irmão mais velho de Simeon, ou simplesmente um velho Cocheiro que eu tivesse visto na doce idade em que todas as emoções são novas? Era difícil adivinhar. Para os cérebros Cheios de literatura, a verdade obumbra-se tanto que é sempre preciso perguntar por ela Como o fez Poncius Pilatos diante de Deus.

Fui para perto do vis-à-vis, bati na perna do velho. Estava feio. O ventre, um ventre fabuloso, parecia uma talha que lhe tivessem entalhado ao tronco; as pernas, sem movimento, pendiam Como traves; os braços, extremamente desenvolvidos, eram quase maiores que as pernas; e a Caraça vermelha, com tons violáceos, lembrava os Carões alegres do Carnaval. Abriu, entretanto, uma das pálpebras com mau humor e resmungou:

_ Pronto!

_ EntãO você não me conhece mais?

_ Eu não, senhor.

_ Pois eu conheço a você desde menino.

Ele abriu de tOdO as pálpebras pesadas, um sorriso de alegre bondade passou-lhe pelo lábio.

_ Saiba vossa senhoria que bem pode ser! Toda essa gente importante de hoje eu conheci meninos de colégio!

Não sei por que estava meio emocionado.

_ E já fez ponto na Estrada de Ferro?

_ Há Vinte anos, eu e o Bamba.

Encostei-me à boleia dO antigo vis-à-vis. Havia vinte anos sim, havia vinte anos que no passar pela estação de carros Os meus olhOs de criança se fixaram curiosamente na fisionomia jocunda de um velho, que já naquele tempo era velho e já naquele tempo gravemente rOncava na boleia de um carro! Havia vinte anos.

E como lhe digo, afirmava ele. Conhece a filha do barão de Cotegipe? Eu vi aquela santa criatura menina. Conhece o filho do grande ministro João Alfredo? E meu amigo, dá-me dinheiro sempre que vem ao Rio. Olhe, há de conhecer o Dr. Fernando Mendes de Almeida e mais o irmão Dr. Cândido. Pois quando eu servia o pai, eles eram meninos de colégio. Há meses eu disse ao Dr. Fernando tudo isso e ele foi dar um passeio no meu carro e deu-me doces, vinho do Porto, dinheiro. Estava admirado e ria...

_ Como se chama você? _ Braga, eu sou o Braga.

Pobre velho cocheiro a quem se dá como às crianças doces de confeitaria! Eu continuava encostado ao vis-à-vis, imensamente triste e com a mesma curiosidade de criança.

_ Trabalho neste ofício desde 1870. Tinha vinte anos, quando comecei. Toda a minha mocidade foi acabada aqui.

_ E não estás rico?! _ Rico?

Soltou uma gargalhada sonora que lhe balançou o ventre e envermelheceu mais. Os seus olhos pequenos olhavam-me da boleia com superioridade compassiva. É difícil encontrar um cocheiro de carro que tenha feito fortuna. Enriquecem os de carroça, os de caminhões. De carro, se citam dois ou três em trinta anos. O ofício, longe de tornar ágeis os corpos, faz lesões cardíacas, atrofia as pernas, hipertrofia os braços, de modo que quinze anos de boleia, de visão elevada do mundo, ao sol e à chuva, estragam e usam um homem como a ferrugem estraga o aço mais fino. O Braga era um velho trapo encharcado. Tanto ádipo dava-me a impressão de que o pobre Velho devia ter água

nos tecidos.

Eu continuava a ouvi-lo. Naquela boleia falava um cultor do quietismo, um renanista que tivesse compreendido o nirvana. Nem uma ambição, nem um ódio: apenas um sorriso de quem não se rala com a Vida e Vem para a rua almejando não encontrar fregueses, para dormir mais à vontade.

_ Ah! este carro! murmurei. Quanta história podia Você contar. Quantas cenas de amor, quantos beijos, quantas angústias e quantos crimes!

_ Este carro não; outros, ou antes, eu. Fui de cocheira, fui de casa particular e trabalhei por minha conta. Quando caiu o ministério João Alfredo fui eu quem o levou ao Paço. Agora essas coisas de beijos _ noutro tempo era nas berlindas.

_ Tinha vontade de saber a sua opinião.

Ele arregalou muito os olhos.

_ A respeito de beijos? Sei lá!

_ Não, a respeito da Monarquia e da República.

Ele sorriu, pensou.

_ A Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene. Não vá talvez pensar que eu sou inimigo da República. Mas recorde por exemplo um dia de audiência pública do imperador. Que bonito! Até era um garbo levar os fregueses lá. Ó Braga, onde estiveste? Fui à Boa Vista! Hoje todo o mundo entra no paláCio do Catete. Não tem importância... E Verdade que o Obá entrava no Paço. Mas era príncipe. E então para conhecer homens importantes! Não precisava saber-lhes o nome. Os ministros tinham uma farda bonita, o imperador saía de papo de tucano. Bom tempo aquele! Hoje a gente tem de suar para Conhecer um ministro. Parecem-se todos Com os outros homens.

_ Talvez não sejam, Braga.

_ Quanto às Capacidades não digo nada...Mas veja. Por estar perto da secretaria é que conheço o Muller, um magro, que reforma a Cidade. E de todo o ministério só ele. Se isso era possível em 1880! Depois, quer saber? A República trouxe a Bolsa, uma porção de Cocheiros estrangeiros, uns gringos e ingleses de Cara raspada, Com uns carros que até nem eu lhes sabia o nome!

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