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horas da noite, cervejinha na fábrica Santa-Maria; depois, la mare dos baralhos e dados. Parece incrível que um realejo, moendo os sinos, dê dinheiro para tantos Vícios. Pois José tem ainda dinheiro para ir à Itália ver Nápoles e depois voltar. Já lá foi mais de vinte vezes.

Está claro que a música, tendo por fim adoçar os costumes, não arrasta todos os seus cultores aos desvarios do monte e da roleta. Há realejos que sustentam numerosas famílias, como o do Vicente, italiano falsamente cego, que desconfia dos filhos, joga a bisca a milho nos botequins das Ruas Formosa e do Areal e já adquiriu alguns prédios; há realejos escravizadores, como o do Antônio Capenga, da estação do Mangue, que espanca os dois pequenos cobradores se por acaso deixam passar um bonde sem lhes dar nada, embora o bonde vá Vazio _ porque Antônio tem amantes e, à custa de sons que na sua algibeira retinem em moedas, resolveu a vida epicuristamente nos três princípios fundamentais: mulheres, jogo e vinho; há realejos solteiros

malandros, realejos virgens prontos para a fuga.

A música chega mesmo em certos casos a harmonizar dissabores num acorde feliz. É o caso do Amaral carpinteiro. Este Amaral cortou certa Vez a mão com uma enxó. Meteu a dita mão em ataduras e resolveu nunca mais trabalhar. Ao contrário do pastor Jacó, sete anos levantou de papo para o ar compondo Versinhos; dedicou-se em seguida a Vender modinhas _ era o Araruama. E nesse serviço descobriu-se vocações musicais.

Hoje é sumidade, é o Caruso das Ruas de S. Jorge e Conceição e não há botequim de café a três vinténs a xícara, onde a sua voz não requebre o

Olé lé lé
Candonga Sinhá.

Nas mesmas condições está o Miguel de Brito. Apesar de português, foi inferior do exército. Quando deu baixa, Comprou um Gramofone para ganhar, como dizia, a vida na roça. Partiu para o Rio Bonito, alugou um salão e estava exatamente pregando um cartaz à porta, quando ouviu na Casa fronteira toCar um gramofone muito mais aperfeiçoado que o seu. Era a musa da música decerto que o prevenia, desejosa de evitar um Confronto desagradável. Brito arrancou o cartaz, Vendeu o Gramofone,

agradeceu a musa e só com sua garganta veio triunfar nas bodegas do Rio.

As bodegas, como os botequins do tom, toleram de vez em quando os músicos, Com a Condição de não lhes pagar nada. Em geral são sempre três _ os tercetos Célebres. Há na Rua do Senhor dos Passas o do Amadeu com as duas irmãs, que, por sinal, já fugiram; na Avenida Passos Chefiado pelo Barradas, cego _ terCeto famoso, por ter percorrido todas as cidades de Espanha, de Portugal, do Chile, do Uruguai, da Argentina e do Brasil; o da fábrica de Cerveja Oriente, o da cervejaria Minerva, Cujo Chefe, o Antônio rabequista, gosta de ser acompanhado de canto. A cervejaria enche-se de trabalhadores atraídos pela alegria dos sons. Sempre uma canção melancólica abre um hiato sentimental entre os fandangos e os cakewalks.

Tanto penar, tanto sofrer.

Amor me mata,

AmOr me mata.

Eu vOu morrer.

Ninguém morre, e um português do Minho que lá passa a noite, brada:

_ Eu cá dinheiro não dOu, mas se tocar a cana-verde pagO a cerveja!

E a cana-verde conclui a canção melancólica.

Oh! eu conheci nessas baiúcas rumorejantes, Onde a populaça vive atraída pela música, até um globe-trotter! Era um veneziano de vinte e três anos, Rafael Angelo, tenor. Nos botequins em que os proprietários eram portugueses cantava O rebola a bola, nOs estabelecimentos espanhóis, O caballero di gracia me llaman, e, lindO, conquistador, com Olhares mortos para as mulheres, era uma delícia ouvi-lo, derreando Os braços para Os lados, como cansado de abraçar, a cantar:

Fra le donne tu sei la piú bella,
Fra le rose tu sei la piú fina
E nel cielo brilhante stella

Nella terra sei nata regina.

A segunda vez que me viu entre os carregadores descalços, Rafael inaugurou O seu mais belo gesto e disse-me:

_ Noto a V. Exa. que isto é apenas uma extravagância boêmia. Resolvi percorrer o mundo em quatros anos, sem ter um vintém de capital. Já estive em Londres, em New York, em Chicago... Estou no Rio de Janeiro há um mês. Che belleza.

Era o Phileas Fogg da cançoneta e arranjava dez a quinze mil réis diários, fora as paixões das damas.

Quase todos esses músicos ambulantes e aventureiros ganham rios de dinheiro, vivendo uma vida quase lamentável. No forro dos casacos velhos há maços de notas, nos cinturões sebentos, vales ao portador. O público pára, olha aquela tristeza, imagina no automatismo dos gestos, na face que pede, no sorriso postiço, a fome dos artistas, a miséria dos deserdados da sorte, e sonha as agonias, como nas óperas, em que os tenores morrem ao sol, sob um céu lindo, cantando.

Por trás dessa fachada há tanto interesse como no negociante mais avaro e tanta vaidade como num artista lírico mais vaidoso _ porque esses músicos ambulantes, humanos como todos nós, nascidos neste mesmo século de vaidade, regulam os seus ideais entre a pretensão, o alto juízo do próprio valor e o número de moedas da coleta. Oh! a música, as árias perdidas no ruído das ruas...Alguém já assegurou que a alma do homem conhece sua natureza pelo canto. Cheguemos à suave conclusão de que conhece a natureza e o resto. De que serviria um realejo senão assegurasse ao seu possuidor, além do conhecimento da própria alma, a satisfação do estômago? Há talvez em outras terras, mais sem pão, caindo sob a neve, depois de uma dolorosa Vida. Aqui não; os músicos prosperam, o realejo é uma instituição, e do alto azul, a harmonia bondosa da natureza, musa da Vida e da alegria, derrama o consolo incomparável do calor e da luz. .

gastas e mais frias, a miséria dos músicos ambulantes, sem fogo,

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