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Fora, as estrelas recamavam de ouro o céu de verão... Músicos Ambulantes

Músicos ambulantes! Um momento houve em que todos desapareceram, arrastados por uma súbita Voragem. Os cafés ViViam sem as harpas clássicas e nas ruas, de raro em raro, um realejo aparecia. Por quê? Teriam sido absorvidos pelos caféscantantes, dominados pelos prodígios do gramofone _ essa maravilha do século XIX, que não deixa de ser uma calamidade para o século XX? Não. Fora apenas uma súbita pausa tão comum na circulação das cidades.

Apesar dos gramofones nos hotéis, nos botequins, nas lojas de calçados, apesar da intensa multiplicação dos pianos, eles foram Voltando, um a um ou em bandos, como as andorinhas imigrantes, e, de novo, as tascas, as baiúcas, os cafés, os hotéis baratos, encheram-se de canções, de vozes de Violão e de guitarra e, de novo, pelas ruas os realejos, os violinos, as gaitas, recomeçaram o seu triunfo.

Há já alguns meses mesmo, uma banda alemã, com instrumentos, estantes e desafinações, atormenta as grandes praças, e eu lobriguei outro dia ainda um bicho lendário por mim julgado tão desaparecido Como o megatério _ o homem dos sete instrumentos! E esse homem, Cheio de instrumentos, ia por aí fora, satisfeito e Corado, Como se tivesse realizado uma agradável receita.

Os músicos vieram todos! Não perde a Cidade os seus foros de musical _ o Rio, onde tudo é música, desde a poética música dos beijos à decisiva música de pancadaria.

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Novamente a beira das calçadas a Valsa dos Sinos e O Guarani se desarticulam em velhos pianos; novamente sujeitos, que parecem cegos, rodam a manivela dos realejos, estendendo a mão súplice, numa ânsia de miséria; novamente, depois de alguns trechos da sonante Boêmia, um piresinho de metal se vos oferecerá, desejoso de níqueis. E todos vós, que sois bons, e todos vós, que gostais de música, haveis de deplorar os coitados que alegram os outros para viver na miséria, Com a alma varada de dor, e todos vós sofrereis a Crise de harmonia. Oh! a música!

Elle mouille comme la pluie, Elle brúle comme le feu.

Uma sanfona faria Harpagon generoso e Lady Macbeth boa.

Esta Cidade é essencialmente musical; era impossível passar sem os músicos ambulantes. A música preside ã nossa vida, a música auxilia até a gestação, e, Consista apenas na voz Como diz Sócrates, Consista, pretende Aristoxeno, na voz e nos movimentos do Corpo, ou reúna ã voz os movimentos da alma e do Corpo como pensa Teofrasto, tem Os caracteres da divindade e comove as almas. Pitágoras, para que a sua alma constantemente estivesse penetrada de divindade, tocava cítara antes de dOrmir e logO ao acordar de novo à cítara se apegava. Asclepíades, médico, acalmava os espíritos frenéticos empregando a sinfonia, e Herófilo pretendia que as pulsações das veias se fazem de acordo com O ritmo musical. Os músicos ambulantes são os descendentes

dos tocadores da flauta, caros aos deuses da Hélade.

Não pensemOs, porém, romanticamente, que todos os músicos morrem de fome ao cair das ilusões. Antes pelo contrário. A biografia de Cada um serve de assunto a todO o boêmio desejoso de ser feliz. Quem conhece O Saldanha, um Velho português baixo, gordo e cego, que viola há mais de vinte anos com um negro também cego da ilha da Madeira, flautista emérito? Esses dois cegos eram acompanhados por um guitarrista escovado, que tocava, fazia a cobrança e ainda pOr cima era poeta, compunha as cançOnetas. Um momento a cidade inteira cantou a sua célebre quadra:

Zás-trás, zás-trás
Malagueta no cabaz
Com jeito tudo se arranja

Com jeito tudo se faz

o que não o recomenda muito ao senso estético dO Rio. Quando os cegos e esse zás-trás amOlavam muito, lá havia sempre algum para gritar:

_ Ó Lírico ambulante!

E o Saldanha, pançudo, grave, imperturbável:

_ Obrigado pelo elogio!

Pois todo o pessoal enriqueceu. O negro casou em Portugal , o Zás-trás conseguiu tudo com jeito, e eu fui encontrar o Saldanha aposentado, considerado como um velho artista diante de um copo de cerveja.

_ Fizemos várias tournées, disse-me ele, percorremos o Brasil, do Rio Grande ao Pará. Ajuntamos alguma coisa...

E não se trata de um caso esporádico. O resultado é geral. O José, italiano capenga, que chegou ao Rio em 1875, alugou, para não trabalhar, um piano de manivela. Em seguida, o seu espírito inventivo foi até comprar um realejo com bonecos mecânicos, entre os quais havia um de mão estendida, que engolia as moedas e punha fora outra qualquer coisa. Esse boneco, a valsa dos Sinos de Corneville, o Caballero de Gracia e o Bendengó deram-lhe uma fortuna. E José resolveu jogar, à farta, jogar forte.

Jogou tanto que teve de arranjar um sócio, personagem fantástico, que dá pela alcunha de Cavalière M idaglia.

O Cavalière gosta também da batota e principalmente do bicho. Até duas horas, dinheiro para o avestruz; nas primeiras

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