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Ouço com assombro, duvidando intimamente desse fervilhar de víciO, de ninguém ainda suspeitado. Mas acompanho-o.

A Rua d. Manuel parece a rua de um bairro afastado. O Necrotério com um capinzal cercado de arame, por trás dO qual Os ciganos cOnfabulam, tem um ar de subúrbio. Parece que se chegou, nas pedras irregulares do mau calçamento, olhando os pardieiros seculares, ao fim da cidade. Nas esquinas, onde larápios, de lenço no pescoço e andar gingante, estragam O tempo com rameiras de galho de arruda na carapinha, vêem-se pequenas ruas, nascidas dOs sOcalcos do Castelo, estreitas e sem luz. A noite, na Opala dO crepúsculo, vai apagando em treva o velho casaredo.

_ E aqui.

O 72 é uma casa em ruína, estridentemente caiada, pendendo para O lado. Tem dois pavimentos. Subimos os degraus gastos do primeiro, uns degraus quase oblíquOs, caminhamos por um corredor em que O soalho balança e range, vamOs até uma espécie de caverna fedorenta, donde um italiano fazedor de botas mastiga explicações entre duas crianças que parecem fetos saídos de frascos de álcool. Voltamos à primeira porta, junto á escada, entramos num quarto forrado imoralmente com um esfarripadO tapete de padrão rubro. Aí, um homenzinho, em mangas de

camisa, indaga com a voz aflautada e sibilosa:

_ Os moços desejam?

_ E você o encarregado?

_ Para servir os moços.

_ Desejamos os chins.

_ Ah! isso, lá em cima, sala da frente. Os porcos estão se opiando.

Vamos aos porcos. Subimos uma outra escada que se divide em dois lances, um para o nascente outro para o poente. A escada dá num corredor que termina ao fundo numa porta, com pedaços de pano branco, à guisa de cortina. A atmosfera é esmagadora. Antes de entrar é violenta a minha repulsa, mas não é possível

recuar. Uma voz alegre indaga:

_ Quem está aí?

O guia suspende a cortina e nós entramos numa sala quadrada, em que cerca de dez chins, reclinados em esteirinhas diante das lâmpadas acesas, se narcotizam com o veneno das dormideiras.

A cena é de um lúgubre exotismo. Os chins estão inteiramente nus, as lâmpadas estrelam a escuridão de olhos sangrentos, das paredes pendem pedaços de ganga rubra com sentenças filosóficas rabiscadas a nanquim. O chão está atravancado de bancos e roupas, e os chins mergulham a plenos estos na estufa dos delírios.

A intoxicação já os transforma. Um deles, a cabeça pendente, a língua roxa, as pálpebras apertadas, ronca estirado, e o seu pescoço amarelo e longo, quebrado pela ponta da mesa, mostra a papeira mole, como a espera da lâmina de uma faca. Outro, de cócoras, mastigando pedaços de massa cor de azinhavre, enraivece um cão gordo, sem cauda, um cão que mostra os dentes, espumando. E há mais: um com as pernas cruzadas, lambendo o ópio líquido na ponta do cachimbo; dois outros deitados, queimando na chama das candeias as porções do sumo enervante. Estes tentam erguer-se, ao ver-nos, com um idêntico esforço, o semblante transfigurado.

_ Não se levantem, à vontade!

Sussurram palavras de encanto, tombam indiferentes, esticam com o mesmo movimento a mão cadavérica para a lâmpada e fios de névoa azul sobem ao teto em espirais tênues.

Três, porém, deste bando estão no período da excitação alegre, em que todas as franquezas são permitidas. Um deles passeia agitado como um homem de negócio. E magro, seco, duro.

_ Vem Vender ópio? Bom, muito bom... Compro. Ópio bom que não seja de Bengala. Compro.

Logo outro salta, enfiando uma camisola:

_ Ah! ah! Traz ópio? Donde?

_ Da Sonda...

Os três grupam-se ameaçadoramente em torno de nós, estendendo os braços tão estranhos e tão molemente mexidos naquele ambiente que eu recuo Como se os tentáculos de um polvo estivessem movendo na escuridão de uma caverna. Mas do outro lado ouve-se o soluço intercortado de um dos opiados. A sua voz Chora palavras vagas.

_ Sapan...sapan...Hanoi...tahi...

O Chin magro revira os olhos:

_ Ele está sonhando. Affal está sonhando. Ópio sonho...terra da gente namorada... bonito! bonito!... Deixa ver amostra.

O meu amigo recua, um corpo baqueia _ o do chinês adormecido _ e os outros bradam:

_ Amostra... Você traz amostra!

Sem perder a Calma, esse meu esquisito guia mete a mão no bolso da calça, tira um pedaço de massa envolvido em folhas de dormideira, desdobra-o. Então o delírio propaga-se. O magro Chin ajoelha, os outros também, raspando a massa com as unhas,

mergulhando Os dedos nas bocas escuras, num queixume de miséria.

_ Dá a amOstra...não tem dinheiro...deixa a amOstra!

Miseravelmente O clamor de súplica enche o quarto na névoa parda estrelejada de hóstias sangrentas. Os chins curvam O dOrsO, mostram os pescoços compridos, como se os entregassem aO cutelo, e Os braços sem músculos raspam O chão, pegando-nos Os pés, implorando a dádiva tremenda. Não pOssO mais. Cãimbras de estômago fazem-me um enorme desejo de vomitar. Só o cheiro do veneno desnorteia. Vejo-me nas ruas de Tien-Tsin, à porta das cagnas, perseguido pela guarda imperial, tremendo de medo; vejo-me nas bodegas de Cingapura, com Os corpos dos celestes arrastados em djinrickchas, entre malaios lOucOs brandindo kriss assassinos! Oh! o veneno sutil, lágrima dO sono, resumo do paraíso, grande matador dO Oriente! Como eu o ia encontrar num pardieirO de Cosmópolis, estraçalhando uns pobres trapos das províncias da China!

Apertei a cabeça entre as mãos, abri a boca numa ânsia.

_ Vamos, Ou eu mOrrO!

O meu amigo, então, empurrou Os três chins, atirou-se à janela, abriu-a. Uma lufada de ar entrou, as lâmpadas tremeram, a nuvem de ópio Oscilou, fendeu, esgueirou-se, e eu caí de bruçOs, a tremer diante dos chins apavorados e nus.

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