Imagens da página
PDF
ePub

OS LUSIADAS

CANTO SEGUNDO

I

Já neste tempo o lucido planeta,
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava á desejada e lenta meta,
A luz celeste ás gentes encobrindo;
E da casa maritima secreta

Lhe estava o deos nocturno a porta abrindo;
Quando as infidas gentes se chegaram
Ás naos, que pouco havia que ancoraram.

II

D'entre elles hum, que traz encommendado O mortifero engano, assi dizia:

Capitão valeroso, que cortado

Tens de Neptuno o reino e salsa via,
O Rei que manda esta ilha, alvoroçado
Da vinda tua, tem tanta alegria,
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te, e do necessario reformar-te.

E

porque

III

está em extremo desejoso

De te ver, como cousa nomeada,

Te roga, que de nada receoso,
Entres a barra, tu com toda armada:
E porque do caminho trabalhoso
Trarás a gente debil e cansada,
Diz que na terra podes reforma-la,
Que a natureza obriga a deseja-la.

IV

E se buscando vás mercadoria
Que produze o aurifero Levante,
Canella, cravo, ardente especiaria,
Ou droga salutifera e prestante;
Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o rigido diamante,
Daqui levarás tudo tão sobejo,
Com que faças o fim a teu desejo.

V

Ao mensageiro o Capitão responde,
As palavras do Rei agradecendo;

E diz, que porque o Sol no mar se esconde,
Não entra para dentro obedecendo:
Porém que como a luz mostrar por onde
Vá sem perigo a frota, não temendo,
Cumprirá sem receio seu mandado,
Que a mais por tal senhor está obrigado.

VI

Pergunta-lhe despois, se estão na terra
Christãos, como o piloto lhe dizia:

O mensageiro astuto, que não erra,

Lhe diz, que a mais da gente em Christo cria.
Desta sorte do peito lhe desterra

Toda a suspeita, e cauta phantasia:
Por onde o Capitão seguramente
Se fia da infiel e falsa gente.

VII

E de alguns que trazia condemnados
Por culpas, e por feitos vergonhosos,
Porque podessem ser aventurados
Em casos desta sorte duvidosos,
Manda dous mais sagazes, ensaiados,
Porque notem dos Mouros enganosos
A cidade e poder, é porque vejam
Os Christãos, que só tanto ver desejam.

VIII

E por estes ao Rei presentes manda,
Porque a boa vontade que mostrava,
Tenha firme, segura, limpa e branda,
A qual bem ao contrario em tudo estava.
Já a companhia perfida e nefanda,
Das naos se despedia, e o mar cortava:
Foram com gestos ledos e fingidos,
Os dous da frota em terra recebidos.

IX

E despois que ao Rei apresentaram
Co'o recado os presentes que traziam,
A cidade correram, e notaram
Muito menos daquillo que queriam;
Que os Mouros cautelosos se guardaram
De lhe mostrarem tudo o que pediam;
Que onde reina a malicia, está o receio,
Que a faz imaginar no peito alheio.

X

Mas aquelle, que sempre a mocidade
Tem no rosto perpetua, e foi nascido
De duas mãis; que ordia a falsidade,
Por ver o navegante destruido;
Estava n'huma casa da cidade,
Com rosto humano e habito fingido,
Mostrando-se Christão, e fabricava
Hum altar sumptuoso que adorava.

XI

Ali tinha em retrato affigurada
Do alto e Sancto Espirito a pintura,
A candida pombinha debuxada,
Sobre a unica phenix Virgem pura:
A companhia sancta está pintada
Dos doze, tão turvados na figura,
Como os que, só das linguas que cahiram
De fogo, varias linguas referiram.

« AnteriorContinuar »