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OS LUSIADAS

CANTO NONO

I

Tiveram longamente na cidade,

Sem vender-se, a fazenda os dois feitores;
Que os infieis por manha e falsidade
Fazem, que não lha comprem mercadores;
Que todo seu proposito e vontade
Era deter ali os descobridores
Da India tanto tempo, que viessem

De Meca as naos, que as suas desfizessem.

II

Lá no seio Erythreo, onde fundada
Arsinoe foi do Egypcio Ptolemeo,
Do nome da irmãa sua assi chamada,
Que despois em Suez se converteo;
Não longe o porto jaz da nomeada
Cidade Meca, que se engrandeceo
Com a superstição falsa e profana
Da religiosa agua Maʼometana.

III

Gidá se chama o porto, aonde o trato
De todo o Roxo mar mais florecia,

De

que tinha proveito grande e grato
O Soldão, que esse reino possuia.
D'aqui aos Malabares, por contrato
Dos infieis, formosa companhia
De grandes naos pelo Indico Oceano
Especiaria vem buscar cada anno.

IV

Por estas naos os Mouros esperavam,
Que, como fossem grandes e possantes,
Aquellas, que o commercio lhe tomavam,
Com flammas abrasassem crepitantes.
Neste soccorro tanto confiavam,

Que já não querem mais dos navegantes,
Senão que tanto tempo ali tardassem,
Que da famosa Meca as naos chegassem.

V

Mas o Governador dos ceos e gentes,
Que para quanto tem determinado,
De longe os meios dá convenientes,
Por onde vem a effeito o fim fadado;
Influio piedosos accidentes.

De affeição em Monçaide, que guardado
Estava para dar ao Gama aviso,
E merecer por isso o Paraiso.

VI

Este, de quem se os Mouros não guardavam,
Por ser Mouro como elles, antes era
Participante em quanto machinavam,
A tenção lhe descobre torpe e fera:
Muitas vezes as naos, que longe estavam,
Visita, e com piedade considera

O damno, sem razão, que se lhe ordena
Pela maligna gente Sarracena.

VII

Informa o cauto Gama das armadas,
Que de Arabica Meca vem cada anno,
Que agora são dos seus tão desejadas,
Para ser instrumento deste dano:
Diz-lhe, que vem de gente carregadas,
E dos trovões horrendos de Vulcano;
E que pode ser dellas opprimido,
Segundo estava mal apercebido.

VIII

O Gama, que tambem considerava
O tempo, que para a partida o chama,
E que despacho já não esperava
Melhor do Rei, que os Ma'ometanos ama;
Aos feitores, que em terra estão, mandava,
Que se tornem ás naos; e porque a fama
Desta subita vinda os não impida,
Lhe manda, que a fizessem escondida.

IX

Porém não tardou muito, que voando
Hum rumor não soasse com verdade,
Que foram presos os feitores, quando
Foram sentidos vir-se da cidade.
Esta fama as orelhas penetrando
Do sabio Capitão, com brevidade
Faz represalia n'huns, que ás naos vieram
A vender pedraria, que trouxeram.

X

Eram estes antiguos mercadores,
Ricos em Calecut, e conhecidos;
Da falta delles logo entre os melhores
Sentido foi, que estão no mar retidos.
Mas já nas naos os bons trabalhadores
Volvem o cabrestante, e repartidos
Pelo trabalho, huns puxam pela amarra,
Outros quebram co'o peito duro a barra:

XI

Outros pendem da verga, e já desatam A vela, que com grita se soltava; Quando com maior grita ao Rei relatam

A

pressa, com que a armada se levava: As mulheres e filhos, que se matam, Daquelles, que vão presos, onde estava O Samorim, se aqueixam, que perdidos Huns tem os pais, as outras os maridos.

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