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LVII

Ó nympha a mais formosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?
D'aqui me parto irado e quasi insano
Da magoa e da deshonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse,
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

LVIII

Eram já neste tempo meus irmãos
Vencidos, e em miseria extrema postos;
E, por mais segurar-se os deoses vãos,
Alguns a varios montes sotopostos:
E como contra o Ceo não valem mãos,
chorando andava meus desgostos,

Eu, que

Comecei a sentir do fado imigo,

Por meus atrevimentos, o castigo.

LIX

Converte-se-me a carne em terra dúra,
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros que vês, e esta figura,
Por estas longas aguas se estenderam:
Em fim, minha grandissima estatura
Neste remoto cabo converteram

Os deoses; e por mais dobradas magoas,
Me anda Thetis cercando destas agoas.

LX

Assi contava, e c'hum medonho choro
Subito d'ante os olhos se apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e c'hum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.

Eu, levantando as mãos ao sancto coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deos pedi, que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.

LXI

Já Phlegon e Pyrois vinham tirando,
Co'os outros dous o carro radiante,
Quando a terra alta se nos foi mostrando,
Em que foi convertido o grão gigante:
Ao longo desta costa, começando
Já de cortar as ondas do Levante,
Por ella abaixo hum pouco navegámos,
Onde segunda vez terra tomámos.

LXII

A gente que esta terra possuia,
Postoque todos Ethiopes eram,
Mais humana no trato parecia,

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Que os outros, que tão mal nos receberam:
Com bailes, e com festas de alegria,
Pela praia arenosa a nós vieram;
As mulheres comsigo, e o manso gado,
Que apascentavam, gordo e bem criado.

LXIII

As mulheres queimadas vem em cima
Dos vagarosos bois, ali sentadas,
Animaes, que elles tem em mais estima,
Que todo o outro gado das manadas:
Cantigas pastoris, ou prosa, ou rima,
Na sua lingua cantam, concertadas
Co'o doce som das rusticas avenas,
Imitando de Tityro as Camenas.

LXIV

Estes, como na vista prazenteiros
Fossem, humanamente nos trataram,
Trazendo-nos gallinhas, e carneiros,
A troco d'outras peças, que levaram:
Mas como nunca em fim meus companheiros
Palavra sua alguma lhe alcançaram,

Que désse algum sinal do que buscamos,
As velas dando, as ancoras levâmos.

LXV

Já aqui tinhamos dado hum grão rodeio
Á costa negra de Africa, e tornava
A proa a demandar o ardente meio
Do ceo, e o polo Antarctico ficava:
Aquelle ilheo deixámos, onde veio
Outra armada primeira, que buscava
O Tormentorio cabo; e descoberto,
Naquelle ilheo fez seu limite certo.

LXVI

Daqui fomos cortando muitos dias,
Entre tormentas tristes e bonanças,
No largo mar fazendo novas vias,
Só conduzidos de arduas esperanças:
Co'o mar hum tempo andámos em porfias:
Que como tudo nelle são mudanças,
Corrente nelle achámos tão possante,
Que passar não deixava por diante.

LXVII

Era maior a força em demasia,
Segundo para traz nos obrigava,
Do mar, que contra nós ali corria,
Que por nós a do vento, que assoprava.
Injuriado Noto da porfia,

Em

que co'o mar (parece) tanto estava, Os assopros esforça iradamente,

Com que nos fez vencer a grão corrente.

LXVIII

Trazia o Sol o dia celebrado,

Em que tres Reis das partes do Oriente

Foram buscar hum Rei de

pouco nado, No qual Rei outros tres ha juntamente: Neste dia outro porto foi tomado Por nós da mesma já contada gente, N'hum largo rio, ao qual o nome demos Do dia em que por elle nos mettemos.

LXIX

Desta gente refresco algum tomámos,
E do rio fresca agua; mas comtudo
Nenhum sinal aqui da India achámos
No povo, com nós outros quasi mudo.
Ora vê, Rei, quamanha terra andámos,
Sem sahir nunca deste povo rudo,
Sem vermos nunca nova, nem sinal
Da desejada parte Oriental.

LXX

Ora imagina agora, quão coitados
Andariamos todos, quão perdidos,
De fomes, de tormentas quebrantados,
Por climas e por mares não sabidos:
E do esperar comprido tão cansados,
Quanto a desesperar já compellidos,
Por ceos não naturaes, de qualidade
Inimiga de nossa humanidade:

LXXI

Corrupto já e damnado o mantimento,
Damnoso e mão ao fraco corpo humano,
E alem disso nenhum contentamento,

Que se quer da esperança fosse engano:
Crês tu, que se este nosso ajuntamento
De soldados não fôra Lusitano,
Que durara elle tanto obediente
Porventura a seu Rei e a seu regente?

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